Projeto 52 Missivas / Um Elogio À Sombra / Sombreiro

Meu amigo do Futuro, venha de onde vier,
sobranceiro, o Sol comandava a Vida na Terra. Mas a depender do ângulo, da estação e do meridiano, os seus raios causavam danos – escassez de água, inclemência em sua fornada incendiária, morte. O planeta parecia estar se aquecendo ano a ano, muito devido ao efeito estufa. O calor que antes alimentava e revitalizava tornou-se exceção nas relações naturais com a Biofesra, excessivamente desequilibradas. O fluxo das correntes de ar produzia cada vez maiores tempestades como se fossem ataques pessoais aos homens. Estes, pareciam não entender que nossa atuação maltratava Gaia e seus habitantes.

As diferenças de temperaturas ampliavam as suas marcas e diferenças – frio intenso, calor estuporante. Viver em casas salvas de intempéries portentosas tinham deixado de ser ocasionais e se estabeleciam como regra em nossas cidades habitadas por populações em condições precárias e instáveis. Os ciclos climáticos naturais, desrespeitados, faziam com que o meio ambiente refletisse o relacionamento abusivo que o oprimia. O Sistema hegemônico no planeta enriquecia seus patrocinadores à base da exploração desenfreada dos recursos tratados como inesgotáveis. Que um dia se findaram.

Uma sombra, mais do que desejada, era fundamental. Eu sonhava – esperança fátua – com a cobertura de um sombreiro gigantesco de temperança que nos blindasse das mazelas humanas: um alívio que viesse a equilibrar as forças que nos arrastavam para o buraco abissal da estupidez. Com a cabeça fresca, enfrentaríamos os desafios que se apresentavam diante da comunidade humana, apesar das divisões de todas as ordens. Ressalvo que estas palavras exprimiam pensamentos de tepidez momentânea na aridez de minhas perspectivas pessoais quanto ao Futuro como espécie. Éramos tão recentes na Terra, mas em nossa ínfima presença, agimos como vetores de uma doença progressiva no corpo de Gaia, que reagiu.

Não surgiu a sombra que refrescaria. O clima se transformou em nosso maior inimigo e naufragamos em uma penetrante e permanente camada sombria por séculos, limpando planícies, vales, colinas, planaltos, montanhas, rios, lagos e oceanos de nossa espécie tenebrosa. Tínhamos tanta potencialidade em realizar prodígios, porém prodigiosamente aniquilamos o Tempo. A Vida deixou de contar com a nossa presença na superfície. Nós, os sobreviventes, terminaremos nossos dias sem dias internados em cavernas, da mesma forma que começamos a nossa caminhada na face dos continentes, atualmente consumados em fogo e ardência.

Adeus!

Participam:

Lunna Guedes / Mariana Gouveia

Imagem por Greg em Pexels.com

BEDA / Pterodátilo

Enquanto um pterodátilo nebuloso carrega o sol no bico para o outro lado do mundo, eu percebo o quanto o manto verde da minha vila foi tomado pelas construções humanas. A antiga fazenda loteada se transformou em um bairro populoso e com problemas no escoamento do trânsito em suas ruas tortuosas. O que nos salva da aridez total é o horizonte ainda visível a partir de pontos mais elevados, como onde estou. Um dia, no entanto, os edifícios mais altos, que se aproximam à esquerda, começarão definitivamente a fazer parte da paisagem humana e talvez não haja como evitar a extinção dos bichos que passeiam no fundo da minha imaginação…

Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso
/ Alê Helga / Claudia Leonardi / Darlene Regina / Adriana Aneli

BEDA / Sobre Mulheres E Bruxas*

Acordei a pensar nas mulheres. No quanto elas são diversas e divinas; únicas e triviais; ostensivas e intraduzíveis; simples e talentosas; práticas e mágicas… Citei, certa vez, que muitas mulheres são bruxas. Antes que um xingamento, considero essa expressão, um elogio. As bruxas foram aquelas mulheres de todos os séculos que, por justamente estarem a frente de seu tempo ou compreenderem a complexidade das coisas ao seu redor e muitas vezes para além de seu território e tempo, acabaram segregadas, condenadas e sacrificadas no fogo ou outro meio de erradicação daquela presença incômoda pelos homens, então no poder aparente.

Sempre tentei compreender o lugar da mulher na História uma história normalmente contada por vencedores e homens. Como elas quase sempre aparecem como um apêndice da atuação masculina, percebi que havia algo errado nesse conto do vigário (portanto, um homem). Aos poucos, pude encontrar exemplos de trabalhos e movimentos de origem feminina, em várias frentes, pelos quais os homens levaram a fama. Sei que, pela divisão do trabalho que se desenvolveu ao longo da civilização humana, os homens assumiram as funções mais visíveis e, supostamente, mais proeminentes. No entanto, o serviço de base, desde a organização dos “pequenos” detalhes do dia a dia até a cuidado dos novos comandantes da ação, bem como a reprodução dos movimentos básicos que suportaram e ainda suportam as bases do nosso crescimento como seres que buscam a evolução, foram realizadas por mulheres. Isso, se não acontecer da participação da fêmea da espécie ser tão escancarada, que seja impossível evitar que ela esteja presente nos anais históricos como autora, inventora ou diretora da criação.

Portanto, desejo às todas as bruxas de minha afeição ou distantes de mim, os melhores votos de boa condução do novo mundo que nasce sob os escombros da incapacidade masculina em administrar o nosso espaço. Espero que vocês tenham aprendido com os nossos erros e não assumam a nossa postura arrogante. As imagens que estou postando junto com este texto estão tratadas com efeitos e derivam de originais pelas quais fiquei obcecado. Trata-se de modelos de vitrines que deviam estar ali para serem reparadas. Alguns dos corpos estão mutilados, sem algum dos membros ou, até, sem as cabeças. Quantas vezes não ouço dizer que mulheres são boas, pena que tem personalidade e falam. Triste! Porém creio que, no fundo, mesmo os machistas sabem que sem as mulheres nós não estaríamos na Terra, seja como espécie, seja como digníssimos filhos da mãe! E, por isso, talvez carreguem certa inveja rancorosa.

Beijo, bruxas!

*Texto de 2013.

Adriana Aneli / Alê Helga / Claudia Leonardi / Darlene Regina
/ Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso

Amor, Será Que Quero Ser Seu Amigo?*

Amigos?

Duas pessoas que se amam, juntas há muito tempo, têm que tomar certos cuidados um com o outro. Um deles, é manter acesa a chama do desejo recíproco. Muitos dirão que isso não é uma circunstância controlável. De certa forma, concordo parcialmente. Pessoalmente, no entanto, creio que além da boa sorte de continuar a sentir atração pelo parceiro de longa data, algo de base indefinível, deve haver um esforço de ambas as partes, caso queiram permanecer unidos no relacionamento.

No decorrer da vida em comum, devemos nos predispor a ouvir a companheira ou companheiro nos momentos mais cruciais da união; no surgimento das eventuais crises; nos episódios em que um dos dois venha a falhar no cumprimento dos acordos feitos. Nessas situações, devemos controlar o ímpeto para não cairmos nas acusações vazias de parte a parte apenas para ganharmos pontos na rixa. Cicatrizes incuráveis podem sobreviver pelas existências afora, ainda que o casal se separe. O trauma de um relacionamento mal resolvido muitas vezes impede que um ou outro, senão os dois, possam ser felizes em novas relações. Na verdade, isso vem a ser o desejo secreto de muitos.

Porém, outra questão pode ser colocada em pauta — como manter a paixão mútua e ainda ser amigo de sua parceira ou parceiro? Ouço e leio que certos ingredientes da paixão vêm a inviabilizar que a vida amorosa dê lugar ao entendimento e/ou compreensão das coisas mais simples. O ciúme seria um desses componentes. O ciúme é uma emoção que perpassa pela História humana, desde a Bíblia, como no episódio do assassinato de Abel por Caim, a passar pela construção habilidosa da trama de Otelo, por Shakespeare e até surgir como temas de canções populares pelo mundo a fora.

A ser algo tão poderoso, oblitera a visão de quem o sente e devemos tentar domá-lo para que um relacionamento com paixão não venha a desencadear em crimes passionais de menor ou maior gravidade, de corações partidos a peitos rasgados por facas. No entanto, tentar compreender o companheiro, entender as demandas de lado a lado, além de um exercício de engrandecimento espiritual dos pares pode propiciar uma consequência indevida. O tesão talvez seja prejudicado. Essa é uma ponderação polêmica, mas não menos real. Passar de apaixonados e amigos (além de cúmplices) para amiguinhos é uma questão de dosagem bem tênue. Como manter o fogo no olhar a cada encontro, manterem-se amantes impetuosos e enamorados, sem prejudicar a relação de irmandade familiar e vice-versa?

Concluo que essa experiência é pessoal e intransferível. Deve ser vivida sem regras pré-estipuladas e sem adjetivações prévias. É uma viagem que cada casal deve empreender sem medo de ser feliz; sem que um e outro perca a individualidade. Se casais decidem elaborar um estilo de vida que seja mais ameno e sem sobressaltos, que seja. Se desejam manter a flama incandescente de namorados, que consigam alcançar a compreensão do amor sem ferimentos graves. Sem humilhações e a morte de consciências. Caso contrário, não há química que os faça ficar unidos…

Foto por Allan Mas em Pexels.com
*Texto de 2017

BEDA / Scenarium / Velho E Sorriso – Parte II

Velho estava acostumado a dormir pouco. Ainda que em dias de baile voltasse às 5h, às 8h se punha de pé. Não encontrou Sorriso. Gato pedia para sair para o jardim e foi atendido. Ao abrir a porta, viu Sorriso passando pelo portão com leite, frios e pãezinhos nas mãos. Ao vê-lo, sorriu.

– Bom dia, Velho! Não tinha quase nada, a não ser café. Fiz umas comprinhas.

– Bom dia, Sorriso! Não precisava… Nos últimos tempos, estou habituado a tomar apenas café, pela manhã.

– Também não estou acostumada… Vamos mudar um pouco. Tome um café da manhã completo, comigo, por mim, tá?

Sorriso, ao verbalizar seu pensamento, percebeu então sua ousadia. E se o que estivesse pedindo fosse demais? Será que ele a considerava tanto quanto imaginou?

– Se fosse fazer algo por alguém, seria por você, Sorriso… e pelo Gato, claro…

Seu rosto se iluminou no sorriso mais aberto. Entraram.

Se era uma coisa que Sorriso sabia fazer era café. Desde bem pequena, aprendeu a preparar a bebida para sua mãe. Em casa, mesmo cansada da noite do trabalho pelas esquinas do Centrão, encontrava prazer nesse cuidado de filha. Ao contrário do que acontecia com a maioria das pessoas, bastava Helena tomar a sua dose encorpada de café para se sentir torporizada. Dormia a manhã toda, enquanto Sorriso cuidava dos três irmãos. Sorriso acabou por ficar só quando dois deles morreram de parada respiratória por uso de cola e o terceiro sumiu sem deixar vestígios, todos antes dos dez anos. Sucessivamente, como praga dos deuses, Helena caiu gravemente enferma e morreu. Ainda antes mesmo de completar doze, já oferecia o corpo em troca de subsistência. Seu Zé, dono do cortiço onde morava – que ela via como uma espécie de pai – teve essa ideia para pagar o aluguel. Foi o primeiro a usá-la. Depois, passou a oferecê-la para outros homens. Fugiu. Vez ou outra, algum homem solitário a chamava para morar um tempo consigo. Ficava o tempo até perceber que se tornara uma empregada mal paga: de cama, mesa e limpeza, além dos eventuais espancamentos. Nunca quis ser uma “típica dona de casa”.

Desta vez, foi Sorriso que tomou a iniciativa de ficar com Velho. Percebeu que tinha uma imensa ternura por aquele homem experiente e triste. Queria cuidar dele, se assim permitisse. Alternativa que pareceu ser aceita quando, após o cheiroso café da manhã, Velho disse para Sorriso ficar à vontade e permanecer o tempo que quisesse. Completou que não impediria que ela continuasse o seu trabalho, se assim desejasse. Pela primeira vez, Sorriso desejou que alguém demonstrasse certo sentimento de posse por si…

Com o correr dos dias, semanas, meses, a relação dos dois se transformou em algo bem mais rico do que apenas uma mescla de simpatia e ternura que sempre existiu. E foi essa situação que os dois filhos de Velho – Júlio e Juliano – encontraram quando foram visitá-lo: um casal feliz. Aquela conjuntura os pegou desprevenidos. Mais uma vez, estavam decididos em convencer o pai a deixar a casa e ir para um asilo. Logo a vista do jardim redivivo, com flores novas a brotar nos canteiros, os deixaram desconcertados. Era como se Dona Nina estivesse esperando com suco, café e bolo. A saudade aumentou ao sentirem os mesmos aromas ao chegarem à porta.

Velho não havia lhes alertado sobre a nova situação quando avisaram que iriam encontrá-lo. Entretanto, preveniu Sorriso sobre como eles se comportariam. Experiente no trato com as pessoas, promotor e relações públicas durante cinco décadas, conhecia a natureza humana. Nada e ninguém o surpreendia. Suspeitando da insistência dos filhos em tirá-lo da casa na qual cresceram e onde ele viveu os últimos sessenta anos, procurou se informar e soube que aquela área estava cada vez mais valorizada e o terreno que abrigava a sua residência valia muito dinheiro. Era disso que se tratava. Nada de desvelo ou preocupação com o velho pai, ainda que se enganassem mutuamente que assim fosse. Nada de desejar o melhor para aquele que os sustentou, educou e se esforçou para que chegassem à faculdade. Apenas interesse econômico. Ele valia mais morto do que vivo. Já vira isso acontecer durante seu trabalho com o pessoal da terceira idade. Tornou-se confidente de muitos velhos – homens e mulheres.

– Como vai, papai? – perguntou o mais velho, Júlio, que aliás carregava o nome do pai.

– Bem! Como pode perceber…

Realmente, Velho parecia ter rejuvenescido uns dez anos. Continuou:

– Eu apresento a vocês, Sorriso, minha companheira…

Literalmente, com os queixos caídos, os Jota-Jota, como eram conhecidos, gaguejaram coisas como “pensamos que se tratasse de uma empregada ou cuidadora”; “o senhor nunca foi disso, se envolver com uma garotinha”; “deve ser uma aproveitadora, de olho em sua grana”…

Sorriso fez que não ouviu e mostrou porque carregava aquela alcunha. Disse de maneira bastante suave e até alegre:

– Fiz bolo de cenoura, café e suco. Por que não se sentam?

Como se tivesse lhes dirigido impropérios, os filhos de Velho começaram a gritar:

– Que é isso? Você não é Mamãe! Quem pensa que é? Putinha!

Velho apenas se dirigiu à porta e pediu que saíssem, com o coração apertado, intuindo que os filhos, para atingi-lo, impediriam que visitasse os netos.

– Isso não vai ficar assim, Velho! Vamos interditá-lo!

Quando saíram, Velho desabou no sofá e quase agradeceu por sua Nina não estar viva para presenciar aquela cena. Sorriso se sentou em seu colo e o abraçou afetuosamente.

O encontro com os filhos se deu no início de 2020. Ainda que doloroso, não quebrou a feliz rotina do casal. Velho e Sorriso, meses antes haviam se tornado assíduos frequentadores dos salões da noite paulistana. Velho reviveu as suas melhores noites. Para Sorriso, que com ele aprendeu seus primeiros passos de dança de salão, se descortinou uma vida que sequer imaginara. Em meados de Março, os bailes de casais começaram a ser cancelados com a chegada do novo corona vírus, com a promessa da progressão da Covid-19. Para evitar o seu avanço, a Quarentena foi instaurada. Não era difícil para o casal ficar em casa, com Gato a lhes acompanhar. Quem pudesse vê-los ocasionalmente, logo identificaria a cumplicidade natural daqueles que se amam.

No início de Abril, Velho começou a se sentir cansado e a tossir um pouco. Logo, percebeu que não estava nada bem. Disse a Sorriso que não queria ir para o hospital, nem que avisasse aos filhos. E pediu a ela que o deixasse sozinho para que não se infectasse com a doença que sentia progredir rapidamente. Sorriso o olhou dentro dos olhos, como gostava de fazer para ali encontrar o brilho do homem gentil e amoroso. Percebeu que estavam um tanto embaçados. Disse:

– Eu nunca mais sairei do seu lado…

Velho sorriu um sorriso de velho que era. Sorriso se deu conta que o estava perdendo. Tomou uma decisão, cujo desfecho só foi conhecido dias depois. Gato, que miava incessantemente no jardim frontal, pedindo para entrar, chamou a atenção dos vizinhos que passavam. Ao se aproximarem, sentiram um forte cheiro vindo de dentro da residência. Chamaram os bombeiros, que arrombaram a porta. Encontraram uma jovem de vinte anos e um senhor de oitenta, abraçados na cama de casal. Mortos. Um leve odor de gás evidenciou a causa dos óbitos.

Ao saírem com os corpos, os soldados passaram por Gato, assentado na cômoda da ante sala. Sonolento e indestrutível.

Beda Scenarium