Partido

Parti de lá, pensando em não voltar…
Sofrimento, perdas, encontros desencontrados,
beijos não dados,
desejos calados.
Foi minha casa, meu lar, meu particípio passado,
presente aberto,
futuro ameaçado.
Janelas, todas, abertas para o horizonte.
Portas, duas, sempre exploradas como entradas e saídas,
sem superstições.
Na rua pouco iluminada, gostávamos de ver estrelas
em céu de campo plano e arborizado.
Cerca branca de madeira
— cenário de filme romântico —
idealizado.
Mas as brigas ganharam peso, som e fúria.
Éramos dois sem medo de magoar,
sem desejo de cura.
Queríamos matar o amor tanto,
que nos matava.
O quarto sempre iluminado como um quadrilátero de luta.
A Lua perdendo foco, ainda que cheia, a empalidecer —
luz cada vez menor, mesmo quando crescente.
Saí, saindo, findando em mim, em si, lá…
Sem retornar fisicamente, continuo a recordá-la
de tal maneira que a carrego comigo
— uma casa inteira —
onde não mais moro,
sendo por ela habitado…

Foto por Tom Tookl

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Portas Dão Samba

Eu me lembro de um samba de Luiz Ayrão pelo qual me apaixonei assim que eu o ouvi. Ainda que fosse uma canção dedicada a Escola de Samba da Portela e eu fosse um fã da Império Serrano; ainda que eu fosse um garoto de 12 anos, inexperiente e tímido, me identifiquei com a imagem do coração escancarado: “Pela porta aberta / De um coração descuidado / Entrou um amor em hora incerta / Que nunca deveria ter entrado / Chegou, tomou conta da casa / Fez o que bem quis e saiu / Bateu a porta do meu coração / Que nunca mais se abriu”. Portas são para isso — servem para entradas, saídas, poemas, romances e canções.

Igreja de São Benedito – São Bento de Sapucaí / MG

Em uma brincadeira antiga se perguntava: “Por que um cachorro entra na igreja? Ora, porque a porta estava aberta”. Não mais, em muitos lugares. A igreja era terreno sagrado tanto para os malfeitores quanto para os vampiros. Diante do aumento da violência, mesmo em cidades pequenas, há horários específicos para que seus portais sejam abertos e fechados. Atualmente, as orações tem tempo marcado. No começo de outubro, fui cumprir um contrato pago antes do advento da Pandemia de Covid-19. Foi o primeiro evento depois de meses inativo. Realizou-se em lugar aberto, com poucos convidados, no Sul de Minas, onde registrei a imagem acima. Cumprimos todos os protocolos de segurança e estou aqui para contar a história.

Pórtico de um hotel no Centro de São Paulo

Há pórticos, portas ou portais que não precisam serem abertos para nos mostrar o exterior. Envidraçados ou vazados, a visão externa se nos apresenta em recortes como telas de cinema, a vigiar os passos de quem passa pela ruas. Carros passeiam pelo leito carroçável e desconhecidos se tornam personagens de comédias ou dramas mudos. A luz projeta sombras e para quem viaja nas linhas de versos ou prosas, criam caminhos de infindáveis labirintos nos quais acabo por me encontrar…

Prédio do início do Século XX reformado – Rua Santa Ephigênia / São Paulo

Portas que fazem igualmente a função de janelas, já que a saída não lhe dá uma saída viável, a não ser você seja um pássaro ou um suicida. A possibilidade de sair sem ir a lugar algum não é uma deferência de portas em varandas elevadas. Muitas vezes, ao sairmos, não temos para onde ir, mesmo que tenhamos liberdade para isso. Portas, diríamos, exigem que as usemos. Que saiamos por elas. Mas nem sempre que retornemos…

Residência de Elton John & Irmãs Kardeshian

Trabalhei nos últimos meses no Yellow Brick Road Garden. Ao fim do caminho dos tijolos amarelos, montamos a residência do galo e galinhas garnisés Elton John, Kim, Kendall e Kyllie. Eu abro a portinhola pela manhã e fecho depois que se recolhem — questão de proteção. Durante o dia, fazem recreação em seu jardim particular, vedado à entrada dos bichos peludos de quatro patas, que observam os bichos penados de duas com o olhar atencioso de quem gostaria de ficarem bem mais próximos do que ficam.

A porta da minha sala…

Para viajar, costumo fechar as portas da minha sala ao mundo exterior. Abri-la não me atrapalharia, supunha. Até que percebi que a minha atenção era presa fácil de borboletas, pássaros ou aviões, folhas farfalhantes ou cachorros com olhares amorosos. Ou qualquer outra coisa. Tenho tentado exercitar a minha atenção o máximo que posso. Não apenas para escrever. Quero sinceramente me esforçar para estar no presente da conversação, da ação, do acontecimento. Valorizar quem está comigo — o tempo em comum. Creio que essa seja a porta de entrada para viver. Ou a saída para não morrer em vida.

Um dos túmulos do Cemitério da Consolação

Certo dia fiz uma incursão ao Cemitério da Consolação. Uma enorme concentração de portas especiais — portas para a Eternidade. E a paz. Foi o que encontrei por lá… Não cruzei com quase nenhuma pessoa. As alamedas entrelaçavam-se em um emaranhado de caminhos para o passado — presente em cada conjunto das obras tumulares. A antiga família mais poderosa de São Paulo tem o maior jazigo da necrópole, feio feito um pesado prédio soviético. Acho estranho que quisessem causar admiração dos vivos, ainda que mortos. Vaidade além do túmulo. No entanto, as que mais gostei foram aquelas que jaziam em ruínas. Como a da imagem acima.

Participam desse projeto:
Lunna GuedesMariana Gouveia e Darlene Regina

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Através Da Minha Janela, Eu Vejo…

São muitas as janelas pelas quais enquadramos o nosso olhar. A depender de onde estejamos, as paisagens mudam. Atualmente, vivemos o isolamento social provocado pela Pandemia de Covid-19. Os cenários são quase sempre os mesmos. O ano de 2020 vai pelo meio e é como se estivéssemos em compasso de espera para um novo tempo… ou não. Voltaremos a ser os mesmos? Nós nos comportaremos como se nada tivesse ocorrido ou mudaremos nosso relacionamento social? Por qual enquadramento veremos a “nova” realidade?

Janela A

… um urubu!

Da casa da minha irmã, a oeste, um urubu pousou no telhado da vizinha. Seria mau agouro ou apenas uma parada para descansar de seu majestoso voo? A ave feiosa e de má fama, apenas por ser a lixeira da Natureza, quando alça voo e plana, ganha nobreza, acima das sujeiras humanas.

Janela B

… a Bethânia.

Essa companheira de forte personalidade de quatro patas dorme dentro de casa, mas costumeiramente a coloco para fora a fim de tomar o fraco sol de outono. Ao abrir a janela do meu quarto, lá está a Bethânia a observar atenta aos meus movimentos. Espera que eu a chame de volta, apenas para pedir para sair novamente a qualquer som de movimento na rua. Então, a bisbilhoteira só quer correr e emitir irritantes e poderosos latidos, algo inesperado para um ser tão pequeno.

Janela C

… o sol tímido de outono.

Pela janela da cozinha, observo luz cada vez mais inclinada indica que o outono avança apesar de permanecermos estanques. Nossas folhas pessoais caem pelo chão a cada pequeno passo em pequenos espaços aos quais estamos confinados. Se bem que não possa reclamar. Tenho muito mais metros a meu dispor do que muitos. Minha prisão está acompanhada de pássaros nas árvores, borboletas e pipas, empinados pelos meninos em férias eternas.

Janela D

… o rio do passado.

A saudade é um rio. Caminho permanente, de águas passageiras. Pode ser uma imagem em preto e branco. Pode ser colorida ou furta-cor. A imagem acima foi de um rio que passou muitas vezes em minha vida, na ida ou na volta do trabalho ̶ o Tietê. Na ocasião, o sol se levantava a leste, a direita de quem se dirige para a periferia da Zona Norte, onde eu moro. Há meses que não exerço a minha atividade. Provavelmente, por atuar na área de eventos festivos, motivo de aglomeração, serei um dos últimos a voltar a trabalhar.

Janela E

… sombras fracionadas.

Pombas arrulham e a luz do sol inclinado faz assomar suas sombras. Alinhadas no telhado da casa de praia, esperam os cães se afastarem para capturarem a comida dos atentos Fred e do Marley no comedouro. Logo, batem asas, investem, refreiam, arremetem. Não será dessa vez. O vidro canaleta da janela do banheiro torna tudo um jogo fracionado, como se fosse um quebra-cabeças de peças soltas. A imaginação inteira voa.

Janela G

… o nada.

No quarto de hóspedes, onde guardava meus equipamentos de trabalho, há uma janela peculiar. É a única janela térrea em nossa casa que não tem uma grade de proteção. Não podemos deixá-la impunemente aberta, ainda que resida em uma rua tranquila. Devemos pensar como o ladrão. No entanto, a visão direta dá de frente para a parede de outra construção. Areja, mas não faz o olhar divagar. A não ser que projetemos sobre ela nossa visão particular ̶ da memória, dos sonhos, da imaginação, do esquecimento ̶ transgressão ou morte.

Participam desta edição de 6 On 6:
Ale Helga — Lucas Buchinger —  Mariana Gouveia Lunna Guedes

BEDA / A Carretilha

CARRETILHA

O Humberto, meu irmão, me enviou uma foto recém-tirada de um objeto tão simples quanto icônico de nosso passado – uma carretilha de poço. Perguntou se lembrava dela. Como esquecer? Ou melhor: como não vincular aquele instrumento a tudo que experimentamos no início de nossas vidas na zona praticamente rural em que fomos morar quando crianças? O ano – 1969.

Era o mesmo bairro em que hoje vivemos. Formado apenas por um conglomerado de ruas de terra, com lotes demarcados por números. Havia poucas construções, uma delas, a nossa. Casa simples, com um quarto, cozinha, um largo corredor, que fazíamos de quarto com camas de molas desmontáveis, e banheiro. Duas janelas maiores e uma pequena, do banheiro, uma única e grande porta, que dava para o corredor.

No início, por falta de dinheiro, madeiras faziam as vezes de porta e janelas. Logo depois, substituídas por outras de ferro, que se tornaram permanentes. Nosso terreno ficava junto a um córrego e era cercado por cercas com trepadeiras de buchas – aquelas usadas para banho.

A ideia de nos mudarmos para a casa inacabada foi tomada por meu pai. Durante a construção, em uma das visitas, encontrou um sujeito pernoitando em nossa futura residência. Temendo que fosse invadida, tomou a decisão de estabelecer a posse. Dessa maneira, lá fomos nós nos mudarmos de um local com luz, água encanada e esgoto para outro com restrição dessas e outras comodidades.

As paredes eram de cimento caiado; o chão, de vermelhão. Havia privada – possuíamos fossa séptica – mas não chuveiro. Com a água retirada de baldes com uma canequinha, tomávamos banho dentro de bacias para impedir que molhássemos o banheiro. A água, esquentávamos ao sol, no verão; por lenha, no inverno. Homem de Ferro. A carretilha surge na história nesse momento, ou melhor dizendo, um tempo depois…

No começo, retirávamos água nos apoiando na beira do poço, com as pernas entreabertas para não cairmos. Quando fizemos um puxadinho – uma futura lavanderia – a carretilha foi pendurada no teto da laje, presa a arames. Então, através de uma corda, retirar água do poço artesiano tornou-se uma tarefa divertida para mim. Gostava da atividade. Minha imaginação voava, enquanto pouco a pouco puxava a corda. Oitavo Homem. Percebi que tarefas repetitivas, como também varrer o chão ou lavar louça, me abstraíam.

O poço ficava no meio do espaço da lavanderia – dois tanques – entre a janela do banheiro e a porta principal da casa. Perto da casa, ficava o galinheiro, uma horta e plantas frutíferas no quintal. Em certa ocasião, quando estava aberto, nosso galo caiu nele. Fui buscá-lo, descendo pela escadinha de ferro. Iluminada por uma lanterna, pude perceber a parede construída por tijolos engenhosamente perfilados.

Com o galo agarrado-assustado-molhado debaixo do braço, desliguei a lanterna, a enfiei no bolso do calção e ascendi a escuridão, divisando a boca de luz cinco metros acima. Batman. Mais uma aventura que enfrentei com destemor de quem achava natural trepar em árvores, escalar paredes – Homem-Aranha – se pendurar em beiradas de lajes, saltar sobre valetas e pequenas corredeiras d’água. Super-Homem.

Apesar das dificuldades, sob a luz de velas sempre prontas para serem acesas diante da constante falta de luz, pontuada pela fumacinha de espirais para combater pernilongos queimando seu cheiro penetrante em nossos pulmões, expulsar os cavalos que comiam as buchas, caminhar sem destino a explorar os morros e as matas próximas me trouxe a sensação de que podia abraçar o mundo. Eu me sentia especial. National Kid. Percebi que toda criança, em liberdade, é um super-herói. E que uma simples carretilha tem o poder mágico de puxar tantas lembranças liquidas do poço das memórias…

Projeto Fotográfico 6 On 6 – Passos | Cenários

Esta cidade que se come, nesta manhã, reaparece em suas linhas retas-irregulares, em cinza-cimento, imersa em cinza-nebulosidade. Linda, de tão feia. Porque quem a ama, bonita lhe parece – distorção que todo amor gera, abrigado por suas praças sem cuidado.

Cena (2)
Retas-irregulares, em cinza…

Quando vejo São Paulo aparentemente desabitada, como nesta manhã-madrugada, sei que por trás de suas portas, paredes e janelas, o drama da vida se apresenta implacável e comovente… Amores acordaram abraçados… Traições foram postas à luz… Amizades passaram a noite insones apenas no bate-papo livre e sem rumo… O desejo de ser feliz pode ter encontrado guarida nos peitos e paixões nos corpos… Ou, tristemente, podem ter se perdido entre os desvãos dos prédios e das ruas sem saída da metrópole insana que desperta…

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Fome de aço…

Tenho fome de asfalto, granito e aço. Eu não sei o que acontece, mas não são poucas as vezes que eu sinto uma tremenda vontade de abocanhar esta cidade. Degluti-la quase inteira, absorvê-la e vomitá-la, renovada e rediviva. Traduzida.

Cenas (2)
Traduções…

Por caminhos antigos, não percebo os escombros. Mas histórias passadas, que um dia foram protegidas por tetos, quartos e salas – lares e comércios – negócios de viver. Espaços contidos de expressão. Lembro as roupas, os comportamentos, adivinho os pensamentos – déjà-vu, atavismo ou alucinação.

Cenários
Escombros…

Progressivamente, o sol se ergue por entre as colunas e lacunas. Durante o dia, pessoas de todas gerações e procedências se cruzarão por suas calçadas, dobrarão suas esquinas. Serão carregadas feito vírus por trens subterrâneos e vias elevadas, por ônibus e automóveis. Cumprem a magna determinação e enlevado desejo do monstro – querer ser maior e pior.

Cenas (3)
Leituras…

Seus personagens ressurgem anônimos e marcantes. Tento lê-los… A moça deselegante e amarfanhada, dona da lojinha de frutas, que arranja as prateleiras. O jovem forte e bonito, negro, que reabre o salão afro de cabelereiros e carrega uma camiseta em que se lê: “I ran like a slave. I walk like a king”. Na padaria, enquanto toma café, o operário com capacete de segurança, lê um livro técnico de engenharia. No trem, uma moça, entretida com um livro religioso, permanece em pé, apesar dos inúmeros bancos vazios.

Cena (1)
Anônimos…

São Paulo é meu carma.

Participam deste projeto: Cilene Mansini | Maria Vitoria | Mari de Castro | Lunna Guedes | Mariana Gouveia