31 / 08 / 2025 / BEDA / Os Sapatos*

Eu priorizo o conforto antes de qualquer coisa. No caso de roupas e calçados, muito mais. Conforto tem a ver com vestimentas, chinelos, tênis e sapatos testados e aprovados no uso constante — ou seja, velharias. Camisetas, largas. Camisas, funcionais. Calças, sem apertar na cintura ou nas pernas. Cuecas, acolhedoras. Meias, as adequadas, ainda que ultimamente tenha misturado padrões e cores. Tento não estar tão dissonante em relação ao ambiente que eventualmente venha a frequentar e costumo ficar no limite entre o que é aceitável para mim e o que exige o local frequentado.

Casado, com filhas e esposa vigilantes, tento não as ofender e sempre pergunto se não estou muito fora do contexto quando saímos juntos. Quando vou sozinho para algum compromisso, a depender da circunstância, uso o basicão. No trabalho, que envolve o infalível “preto comendador” é perfeito porque fico invisível, principalmente para fazer os previsíveis “corres” inesperados para solucionar algum problema técnico ou de outra ordem.

No domingo, na montagem do equipamento de som e luz para o evento que interviríamos às 17h, achei que daria tempo para voltar para casa almoçar, mas devido à mudança de horário, tivemos que permanecer no local e eu estava vestido de forma supostamente inadequada por se tratar de um aniversário um tanto mais estiloso. Porém, o anfitrião, descontraído, disse não se importar com o que eu vestia — bermuda social e camiseta preta. Ajudava o fato de a apresentação ser de uma banda de pegada roqueira. Acabado o evento, na desmontagem, o meu tênis (que usava para algumas das minhas caminhadas) não aguentou o tranco e começou a abrir o solado. Seria um prenúncio do que viria a acontecer no dia seguinte?

Na segunda-feira, para ir ao meu compromisso, decidi usar velhos sapatos, confortáveis, bicos largos, conhecedores dos meus pés, afeitos aos seus formatos. Na ida, eu percebi que havia começado a abrir a lateral do esquerdo, mas achei que não seria um problema tão grande quanto o que se tornou com o aumento do rasgo como se fora uma gradual abertura de um portal quântico para o escape do pé da dimensão ao qual estava timidamente recolhido.

Para evitar que o solado não se descolasse, comecei a arrastar o pé esquerdo pela Praça da República, depois de ter saído do Metrô, como se fosse alguém com problema de locomoção. A minha dignidade estava sendo testada, se eu tivesse alguma. Afinal, ali ninguém me conhecia, ainda mais com máscara, e eu era apenas mais uma delas, perna esquerda dura, em meio a tantos desalentados e cambaleantes à minha volta.

Em dado momento, nem esse subterfúgio funcionou e meu pé finalmente atravessou a fronteira final. Tirei do pé o pobre sapato tão despedaçado quanto um coração magoado e caminhei um bom trecho descalço até a loja mais próxima. A meia preta, da cor do sapato, até que conseguiu mascarar para os outros pedestres a falta do “pé” que estava em minha mão. Os meus passos, bem mais regulares, fingiam saber para onde ia. Saí de lá com novos companheiros, firmes e reluzentes.

Um dia, tanto quanto um bom sapato velho, atravessarei o estágio derradeiro do uso funcional de minhas faculdades mentais e físicas e me deixarei ir, estiolado. Estimo que aconteça comigo algo muito mais digno do que ser atirado num cesto para coisas sem uso — um asilo. Ao final, espero receber um adeus tão sentido quanto ao que dei aos meus antigos calçados, deixados na lata do lixo.

*Texto de 2021

Entulho*

Quando eu era mocinho, faziam “bulling” com o meu nome, Obdulio, o relacionando com bagulho, com entulho ou embrulho. Como gostava dele, por ser incomum, segurava a onda numa boa. Hoje, sei que a questão do entulho é muito mais importante que qualquer brincadeira com nomes e que corremos o risco de sermos todos engolidos pelo lixo, de nos tornamos apenas bagulhos.

É muito comum encontrarmos aqui na Periferia locais onde são despejados entulhos – restos de materiais de construção, móveis velhos, utensílios indesejados de todos os tipos. Esses objetos são depositados nas calçadas e esquinas (feitos despachos), muros e jardins das nossas ruas e avenidas. Essas ações, normalmente, não são realizadas por seus (ex)proprietários, mas por intermediários que recebem um dinheirinho para descartá-los. No entanto, quem paga até vem a imaginar, pelo pouco valor envolvido e veículos utilizados (muitas vezes, carroças de tração humana), o destino que será dado ao seu entulho. Porém, a partir do momento que o entrega, não quer mais saber para onde será encaminhado… Não deve ser incomum ocorrer de o sujeito ver a sua própria privada, onde sentou tantas vezes ou o sofá, onde deitou outras tantas, jogados no caminho para pegar o seu ônibus ou atrapalhando a passagem de seu carro…

Essa questão de nosso lixo é, para mim, primordial para identificarmos a quantas anda tanto o nosso nível educacional institucional como o familiar e, antes de tudo, da nossa consciência particular e coletiva. Reflexo direto do que somos como povo, especulo que não merecemos representantes melhores do que temos, mesmo porque é em nosso seio que eles surgem. Escolher aqueles que tem genuína preocupação com a Ecologia tem sido a minha preocupação nas últimas eleições. Se há representantes que, em vez de fazerem promessas mirabolantes, simplesmente se comprometerem com a efetivação de uma Educação de qualidade, bem como o saneamento básico irrestrito, terá o meu apoio.

Da Educação ampla, se desenvolvem os instrumentos para o conhecimento que leva quem a detém, a melhorar a sua vida e de todos ao redor; a de desenvolver a consciência de que temos responsabilidade coletiva com o bem comum; a entender de que a nossa casa não termina no portão para a rua; que o meio ambiente vem a sofrer com o nosso descaso; que, sem sabê-lo saudável, ficaremos (como estamos) igualmente doentes.

Quando falo em saneamento básico, o relaciono à preservação de mananciais, com o tratamento total de nossos esgotos, com a consequente oferta de água potável para todos, o que diminuiria bastante o gasto com a Saúde, já que o uso de água de qualidade evitaria o surgimento das doenças mais comuns, mas não menos graves, por serem endêmicas. Um povo educado valorizaria a geração de energia limpa, eficiente e de oferta quase ilimitada, como a solar e a eólica e veria com desconfiança a ideia de reserva de mercado para combustíveis fósseis que favorecem mais a uma empresa sob a direção de homens que manipulam números dentro do País, enquanto guardam outros fora dele, acima dos interesses da nação.

Eu sei que este possa vir a parecer um pronunciamento partidário, mas desisti de deixar de me colocar à parte das principais discussões que envolvem o nosso modo de vida, para além da observação dos pequenos (apesar de definidores) detalhes da vida cotidiana. Política é a arte da convivência e as pessoas a tem transformado na arte do confronto.

O dono do espelho quebrado terá sete anos de azar, assim como todos que jogam lixo na rua, assim como todos nós, que vivemos neste País. Enquanto isso, utópico, fico a lutar pela salvação pelo Sol, a favor dos moinhos de vento…

*Texto de 2015

BEDA / A Raiz

Eu era uma árvore antiga
Já vira milhares de cenas
Já vivera milhares de vidas
Por cada cabeça que passou por mim
Eu me compadeci da maioria
E me perguntava: de onde vinham?
Para onde vão?
Como conseguem viver sem raízes?
Sem um lugar para chamar de chão?
Cresci forte e via propósito
Nas aves que abrigava
Na sombra que projetava
Comecei a adoecer
Quando percebi os atos desrespeitosos
O descaso com a minha saúde
As pessoas alimentando o meu solo
Com o lixo humano
Senti que não servia mais para limpar o ar
Aplacar os ruídos fortes
Filtrar o ódio que os bípedes produziam
Morri aos poucos
Galho por galho
Folha por folha
Tronco e raiz
Decidi, então, me deitar
Sem ferir ninguém
Na calada da noite
Testemunhada apenas por meus pares
Vertendo terra cor de sangue
Para ser esquartejada
E levada aos pedaços
Para jazer em partes
Longe das gentes
E dos pecados…

*Poema de 2015, após eu ver uma das árvores da Praça da República que tombou durante uma noite fria de Junho. Participante do BEDA: Blog Every Day August.

Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Bob F / Denise Gals / Claudia Leonardi / Lunna Guedes / Suzana Martins

Setes de Setembros

*Bethânia e eu – 7 de setembro de 2021

Nas minhas redes sociais, publiquei a 7 de Setembro de 2021, palavras que ecoavam há um ano, reverberavam ontem e valerá para depois. O personagem ao qual me refiro, nem deve ser jogado no lixo da História. Se possível, deve ser contido em uma caixa de chumbo de contenção para resíduo radioativo.

“Enquanto a tarde se desvanece, fico a pensar o quanto caminhamos para nos perdermos nesta encruzilhada a que chegamos. As pessoas que escolheram ir em direção ao abismo, mesmo que tenham perdido acompanhantes – os que pararam no meio, os que voltaram ou mesmo aqueles que buscaram outras veredas – querem que todo o povo despenque junto com elas, obedecendo a um líder insano, que deseja o aniquilamento de todos os progressos já realizados. Essa matriz assassina-suicida abomina a convivência entre os diferentes. Como somos um povo de vários matizes, deseja eliminar a diferença pela morte dos desiguais, dos excluídos, dos empobrecidos, das identidades multigêneros, das maiorias minoritárias em termos de poder de expressão. A minha expectativa, nem tenho mais esperança, é que o dia seguinte aconteça. Que venha a aurora e o crepúsculo, passando pelo pico solar. Que as crianças, como as que vejo agora, continuem a ter como única preocupação num feriado nacional: empinar pipas impulsionadas pelo vento refrescante que nos envolve agora. ‘Apesar de você, amanhã há de ser outro dia’…”.

#diadosexcluídos
#viveremorreremsp
#emtardeser
#crepuscular
#foraignominioso

Caramujo*

Em Maio de 2016*, escrevi:
“Assim como o homem ganhou o espaço dos pássaros e aprendeu a voar, no solo adaptou ensinamentos dos companheiros que habitam este planeta para sobreviver. Basta força de vontade, força física e mental. Eu e o Humberto estávamos descarregando o equipamento para o evento de sábado na região da Faria Lima quando avistamos uma grande carroça, com uma tenda adaptada, a se aproximar lentamente, puxada por um homem. Aquela rua sem saída devia ser o local onde estacionavam.

Dentro dela, percebi a movimentação de pelos menos duas pessoas e um cachorro… Imediatamente, entendi que ali estava, além da casa onde aquela família morava, o ponto onde armazenavam o que recolhiam nas ruas da região. O que foi corroborado pelo movimento que presenciei logo depois, quando descarregaram o material reciclável recolhido… Já ouvi se dizer algumas vezes que é feliz o caramujo, que carrega a sua casa nas costas… E o homem, seria também?…”.

Para além da aceitação de um estilo de vida alternativo, o aumento recente dos moradores em situação de rua é devido a perda do trabalho e renda, obrigando-os recorrer a trabalhos ocasionais, os chamados “bicos” ou até, mais radicalmente, a expedientes que os marginalizam, como furtos e assaltos mediante ameaça. Há poucos que, conscientemente, decidem estabelecer a rua como moradia permanente, mas há. A decisão se dá por conflitos familiares ou por uso de entorpecentes que gradativamente os afastam do núcleo familiar.

Eu me lembro que o pessoal da carroça citado no texto se sentia bem à vontade nas condições da sua “moradia”. Mas como sabemos, aprendemos a viver dentro de determinados parâmetros, os piores possíveis, por questão de sobrevivência. A independência tem o seu preço a cobrar, ainda que seja difícil crermos que pouco dinheiro seja imperativo para a liberdade seja bem vivida. Ficar ao largo do Sistema, mesmo que vivendo de suas sobras, acarreta consequências.

Eu me lembro que quis um dia viver fora dos pressupostos que a Sociedade estabeleceu como o ideal — casa, esposa e filhos, trabalho — com férias remuneradas uma vez por ano. Aos 17 anos, quando me perguntavam o que eu seria profissionalmente, respondia pura e simplesmente: Lixeiro. Eu já estava, no final dos anos 70, bastante envolvido nos movimentos que buscavam uma civilização humana mais consciente do destino de Gaia. Anos antes, na primeira vez que li que as florestas eram “recursos econômicos”, fiquei horrorizado por essa visão mercantil que tratava as árvores apenas como material consumível, não como vidas que constituíam biomas, ecossistemas, organismos desenvolvidos.

Sabia, mesmo tão novo, que o Lixo era um recurso inestimável. Apenas não havia interesse empresarial em investir na transformação desse bem de capital em bens de consumo. Atualmente, recolher resíduos recicláveis tornou-se a atividade de um grande número de pessoas que constituem um elo importante na corrente que levará à transformação de nosso estilo de vida predatório para um menos agressivo. Fico a imaginar que, naquela carroça, poderia estar eu e minha pequena família caso eu tivesse enveredado radicalmente pela rua como moradia.