Em Maio de 2016*, escrevi:
“Assim como o homem ganhou o espaço dos pássaros e aprendeu a voar, no solo adaptou ensinamentos dos companheiros que habitam este planeta para sobreviver. Basta força de vontade, força física e mental. Eu e o Humberto estávamos descarregando o equipamento para o evento de sábado na região da Faria Lima quando avistamos uma grande carroça, com uma tenda adaptada, a se aproximar lentamente, puxada por um homem. Aquela rua sem saída devia ser o local onde estacionavam.
Dentro dela, percebi a movimentação de pelos menos duas pessoas e um cachorro… Imediatamente, entendi que ali estava, além da casa onde aquela família morava, o ponto onde armazenavam o que recolhiam nas ruas da região. O que foi corroborado pelo movimento que presenciei logo depois, quando descarregaram o material reciclável recolhido… Já ouvi se dizer algumas vezes que é feliz o caramujo, que carrega a sua casa nas costas… E o homem, seria também?…”.
Para além da aceitação de um estilo de vida alternativo, o aumento recente dos moradores em situação de rua é devido a perda do trabalho e renda, obrigando-os recorrer a trabalhos ocasionais, os chamados “bicos” ou até, mais radicalmente, a expedientes que os marginalizam, como furtos e assaltos mediante ameaça. Há poucos que, conscientemente, decidem estabelecer a rua como moradia permanente, mas há. A decisão se dá por conflitos familiares ou por uso de entorpecentes que gradativamente os afastam do núcleo familiar.
Eu me lembro que o pessoal da carroça citado no texto se sentia bem à vontade nas condições da sua “moradia”. Mas como sabemos, aprendemos a viver dentro de determinados parâmetros, os piores possíveis, por questão de sobrevivência. A independência tem o seu preço a cobrar, ainda que seja difícil crermos que pouco dinheiro seja imperativo para a liberdade seja bem vivida. Ficar ao largo do Sistema, mesmo que vivendo de suas sobras, acarreta consequências.
Eu me lembro que quis um dia viver fora dos pressupostos que a Sociedade estabeleceu como o ideal — casa, esposa e filhos, trabalho — com férias remuneradas uma vez por ano. Aos 17 anos, quando me perguntavam o que eu seria profissionalmente, respondia pura e simplesmente: Lixeiro. Eu já estava, no final dos anos 70, bastante envolvido nos movimentos que buscavam uma civilização humana mais consciente do destino de Gaia. Anos antes, na primeira vez que li que as florestas eram “recursos econômicos”, fiquei horrorizado por essa visão mercantil que tratava as árvores apenas como material consumível, não como vidas que constituíam biomas, ecossistemas, organismos desenvolvidos.
Sabia, mesmo tão novo, que o Lixo era um recurso inestimável. Apenas não havia interesse empresarial em investir na transformação desse bem de capital em bens de consumo. Atualmente, recolher resíduos recicláveis tornou-se a atividade de um grande número de pessoas que constituem um elo importante na corrente que levará à transformação de nosso estilo de vida predatório para um menos agressivo. Fico a imaginar que, naquela carroça, poderia estar eu e minha pequena família caso eu tivesse enveredado radicalmente pela rua como moradia.