BEDA / A Traição

Traição
“Julgamento da Inconfidência”, de Eduardo de Sá – 1921

Ontem, foi feriado. Não por ser um domingo de Páscoa, mas pelo Dia de Tiradentes, efeméride que é comemorada no dia de sua execução, a 21 de Abril de 1792. Em paralelo à Paixão de Cristo, é interessante notar que as imagens que conhecemos de seus últimos dias faz referência a um tipo parecido com o homem crucificado há mais de 2.000 anos – barba e cabelos longos. Além disso, o Mártir da Inconfidência, traído por um dos seus seguidores, ao assumir toda a culpa, deu a vida por sua causa. Foi enforcado e esquartejado.

Há quatro anos, em uma reportagem televisiva realizada sobre um maior acesso à documentos relativos à Inconfidência Mineira, em Ouro Preto, o que mais me chamou a atenção foi a leitura da citação feita à época pelo responsável em reportar a prisão de Joaquim José da Silva Xavier, acusado de conspiração contra o Reino de Portugal. Nesse texto, o prisioneiro era descrito como “feio e espantado”, quando fora levado à ferros.

Feio, eu não duvido que Tiradentes fosse, ainda mais para um escriba que via ali alguém que ousava querer derrubar o sistema que lhe garantia o seu modo de vida. Porém, ao colocar o termo “espantado”, creio que ele conseguiu resumir muito bem o sentimento daquele homem que estava diante de seus olhos.

Não deixo de me compadecer daquele sujeito feio e idealista, que talvez não pudesse acreditar que fora traído por um de seus pares. Ontem, no dia do Enforcado, 227 anos depois, nossas esperanças de um Brasil mais justo e igualitário em oportunidades e direitos para todos estão sendo progressivamente esquartejadas. Mas tudo começou antes. Nada acontece sem causa – iniciou-se com os desvios dos seduzidos pelo poder pelo poder – meus companheiros de causa. Quando vi acontecer, devo ter ficado com um ar tão espantado quanto ficou o Alferes que extraia dentes.

Para alguns desses companheiros, até talvez se possa conceder o benefício da dúvida. Homens e mulheres que se iludiram no início. Que fizeram o que fizeram apenas como um meio para alcançar suporte para o projeto de propiciar a melhoria de vida do Povo brasileiro. Talvez, no início…

Mas, passado algum tempo, quando o monstro se apresentou em todo seu esplendor, em vez de o rejeitarem, se afeiçoaram a ele e, agora, iludem a quem os segue, que o convidaram para eventos, que compartilharam o mesmo espaço, que tiraram fotos ao seu lado e viveram “la vida loca”, bem amparados por contas não contabilizadas, se bem que oficializadas.

Mas Deus sabe que a minha ilusão foi bem-intencionada, como Deus sabe que o caminho para o Inferno é pavimentado de boas intenções. Se hoje pareço um homem descrente do brasileiro e do Brasil, ao mesmo tempo revelo que consigo, para além do espanto, encontrar, em dias mais ensolarados, o calor da esperança queimando em fogo baixo, bem dentro de mim. Eu sou daqueles que ainda acredita no trabalho, na educação, na beleza e na arte, sem nenhuma contradição ou juízo de valor.

Hoje, mergulho profundamente na História para me sentir totalmente identificado com o Inconfidente feio e espantado do final do século XVIII…

Quimera

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Figura in: https://www.oversodoinverso.com.br/misteriosa-lenda-da-quimera/

Ouviste, certa vez, o chamado atávico e o teu corpo
Transformaste em instrumento de vida, dos pés ao metacarpo
Resultado de encontros de vultos de épocas anteriores
Estavas preparada para aceitares a vocação de sonhadores
Os teus pés, adaptados para saltar, além de caminhar
Deslizavam, além de se mover, comoviam, quando te viam transpirar
Transpôs o óbvio com os teus passos construídos de dor
Quando tinha que comer, viveu apenas de ar e bebeu apenas suor
Segurou o ar, quando tinha que se expressar, calou a palavra
Para emudecer, de emoção, uma multidão, com a arte de tua lavra
Leoa com andar de serpente, és um monstro, uma quimera
Quem pensa que te conquista, em verdade não considera
Que é consumido pelo fogo da qual és filha, mãe e senhora
Concedes a atenção obsequiosa de quem és servil portadora
Da graça suprema de seduzir e encantar, de prometer o Paraíso
Ao alcance do olhar, de sereia que faz o navegador perder o juízo
Vives na terra, apesar de viajar pelo amplo, para além, para o espaço
E fulguras, diminuta figura com as asas de Ísis, a voar para além do chão escasso…

 

 

 

 

 

Projeto Fotográfico 6 On 6 – Passos | Cenários

Esta cidade que se come, nesta manhã, reaparece em suas linhas retas-irregulares, em cinza-cimento, imersa em cinza-nebulosidade. Linda, de tão feia. Porque quem a ama, bonita lhe parece – distorção que todo amor gera, abrigado por suas praças sem cuidado.

Cena (2)
Retas-irregulares, em cinza…

Quando vejo São Paulo aparentemente desabitada, como nesta manhã-madrugada, sei que por trás de suas portas, paredes e janelas, o drama da vida se apresenta implacável e comovente… Amores acordaram abraçados… Traições foram postas à luz… Amizades passaram a noite insones apenas no bate-papo livre e sem rumo… O desejo de ser feliz pode ter encontrado guarida nos peitos e paixões nos corpos… Ou, tristemente, podem ter se perdido entre os desvãos dos prédios e das ruas sem saída da metrópole insana que desperta…

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Fome de aço…

Tenho fome de asfalto, granito e aço. Eu não sei o que acontece, mas não são poucas as vezes que eu sinto uma tremenda vontade de abocanhar esta cidade. Degluti-la quase inteira, absorvê-la e vomitá-la, renovada e rediviva. Traduzida.

Cenas (2)
Traduções…

Por caminhos antigos, não percebo os escombros. Mas histórias passadas, que um dia foram protegidas por tetos, quartos e salas – lares e comércios – negócios de viver. Espaços contidos de expressão. Lembro as roupas, os comportamentos, adivinho os pensamentos – déjà-vu, atavismo ou alucinação.

Cenários
Escombros…

Progressivamente, o sol se ergue por entre as colunas e lacunas. Durante o dia, pessoas de todas gerações e procedências se cruzarão por suas calçadas, dobrarão suas esquinas. Serão carregadas feito vírus por trens subterrâneos e vias elevadas, por ônibus e automóveis. Cumprem a magna determinação e enlevado desejo do monstro – querer ser maior e pior.

Cenas (3)
Leituras…

Seus personagens ressurgem anônimos e marcantes. Tento lê-los… A moça deselegante e amarfanhada, dona da lojinha de frutas, que arranja as prateleiras. O jovem forte e bonito, negro, que reabre o salão afro de cabelereiros e carrega uma camiseta em que se lê: “I ran like a slave. I walk like a king”. Na padaria, enquanto toma café, o operário com capacete de segurança, lê um livro técnico de engenharia. No trem, uma moça, entretida com um livro religioso, permanece em pé, apesar dos inúmeros bancos vazios.

Cena (1)
Anônimos…

São Paulo é meu carma.

Participam deste projeto: Cilene Mansini | Maria Vitoria | Mari de Castro | Lunna Guedes | Mariana Gouveia

Quimera

Figura in: https://www.oversodoinverso.com.br/misteriosa-lenda-da-quimera/

Ouviste certa vez o chamado atávico e o teu corpo
Transformaste em instrumento de vida dos pés ao metacarpo
Resultado de encontros de vultos de épocas anteriores
Estavas preparada para aceitares a vocação de sonhadores
Os teus pés, adaptados para saltar, além de caminhar
Deslizavam, além de se mover, comoviam, quando te viam transpirar
Transpôs o óbvio com os teus passos construídos de dor
Quando tinha que comer, viveu apenas de ar e bebeu apenas suor
Segurou o ar quando tinha que se expressar, calou a palavra
Para emudecer de emoção uma multidão com a arte de tua lavra
Leoa com andar de serpente, és um monstro, uma quimera
Quem pensa que a conquista, em verdade não considera
Que é consumido pelo fogo da qual é filha, mãe e senhora
Concedes a atenção obsequiosa de quem é servil portadora
Da graça suprema de seduzir e encantar, de prometer o Paraíso
Ao alcance do olhar, de sereia que faz o navegador perder o juízo
Mas vives na terra, apesar de viajar pelo amplo, para além, para o espaço
E fulguras, diminuta figura com as asas de Ísis, a voar para além do chão escasso.