Quando Roberto Carlos Cantou Contra o Sistema

Em 1967, em plena Ditadura Militar, um ano antes dela apresentar as piores facetas de um regime de exceção, com a instauração do AI-5, que viria suprimir direitos e aprofundar a repressão, aconteceu o III Festival da Música Brasileira, veiculado pela TV Record. Roberto Carlos, então cantor e compositor de grande penetração popular, graças ao Movimento da Jovem Guarda, decidiu participar com uma composição de Luiz Carlos Paraná.

Paraná era autodidata no violão e foi lavrador até os 19 anos no interior de São Paulo. No Rio de Janeiro, chegou a dividir quarto de pensão com João Gilberto. Além de compositor, ficou famoso como proprietário do Jogral, bar que movimentou a noite paulistana da época e gerou a gravadora Jogral, embrião da “Discos Marcus Pereira”, outro marco no meio musical. Era a segunda participação de Luiz Carlos Paraná em um festival. “De paz e amor”, parceria dele com Adauto Santos, ficou em segundo lugar no ano de 1966, interpretada por Elza Soares.

Roberto, apesar de sua origem “espúria”, decidiu enfrentar as possíveis críticas da plateia-base dos festivais, formada por estudantes de perfil intelectualizado, com viés ideológico de vários matizes. Aquela era a arena onde expressavam suas ideias e preceitos.  “Maria, Carnaval E Cinzas” era um samba belo e triste, que versava sobre a mortalidade infantil, tão comum entre a população carente da época. Como filho de agricultores, Paraná vivera de perto a realidade comum onde grassava a pobreza, tal qual no morro que Maria nascera. O indecente é que, depois de meio século, os índices ainda sejam altos em várias regiões do País. 

Em um festival onde compareceu “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam; “Domingo No Parque”, de Gilberto Gil; “Roda Viva”, de Chico Buarque e “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, a quinta colocação obtida pela canção interpretada por Roberto Carlos, foi um grande feito. Mais adiante no tempo, Roberto voltaria a mostrar seu posicionamento em relação à Ditadura de forma igualmente velada, ao lançar “Debaixo Do Caracol Dos Seus Cabelos”, em 1971. Nessa canção, em letra pungente, ele homenageia Caetano Veloso, então exilado em Londres, que “deixa sangrar no peito uma saudade e um sonho” de “voltar prá sua gente”.

Abaixo, a letra da música e o vídeo de sua apresentação no III Festival da Música Brasileira. Entre vaias e aplausos, Roberto Carlos enfrenta-canta com serenidade e afinação, o ruidoso público. Climático ao extremo, esse foi o festival onde Sérgio Ricardo, ao interpretar “Beto, Bom de Bola”, contrariado com a reação dos expectadores, quebrou o violão e jogou o instrumento ao público. O resto é História…

Maria, Carnaval e Cinzas

Nasceu Maria, quando a folia
Perdia a noite, ganhava o dia
Foi fantasia, seu enxoval
Nasceu Maria, no carnaval
E não lhe chamaram, assim como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Seria Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de amor

Não era noite, não era dia
Só madrugada, só fantasia
Só morro e samba, viva Maria
Quem sabe a sorte lhe sorriria?

E um dia viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
E em plena folia decerto estaria
Nos olhos e sonhos de mil foliões

Morreu Maria, quando a folia
Na quarta-feira, também morria
E foi de cinzas, seu enxoval
Viveu apenas um carnaval

Que fosse chamada então como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Em vez de Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de dor

Não era noite, não era dia
Somente restos de fantasia
Somente cinzas, pobre Maria
Jamais a vida lhe sorriria

E nunca viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

Maria, Maria, Maria

Tereza Da Praia – Uma Libertária

Tereza

Eu era novo ainda quando ouvi “Tereza da Praia” pela primeira vez. O gosto do garoto da Periferia diferia da média dos meus vizinhos, assim como dos todos os outros, à época. Eu apreciava naturalmente a música brasileira mais antiga. Tinha à minha disposição uma discoteca incompatível para alguém de padrão empobrecido, herdado de minha vó paterna. Ouvia os acetatos de 48 rotações de Maísa a Mário Zan. A minha conexão com os temas de pelo menos vinte anos antes, cantados e ouvidos quase em sequência obsessiva, era de alguém que se identificava como se fossem atuais. O que não impediu de receber com entusiasmo a chegada dos novos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé, Jards Macalé que, ao mesmo tempo que homenageavam os artistas tradicionais, traziam novos ares, que alguém acabou por cunhar de MPB – Música Popular Brasileira.

As canções apresentavam uma durabilidade quase irrestrita. Eram executadas por anos em programas de rádio que, sem preconceito, divulgavam o panorama musical de todas as origens e estilos: francês, português, espanhol, italiano, alemão, latino-americano – tangos, boleros, mambos, rumbas – além da hegemonia dos de língua inglesa. Os Beatles eram um capítulo à parte – um amor cego. Quando se separaram, sofri como se fosse morte em família, que a paixão por Elis substituiu gradativamente. Em meu leque de preferências incluía Elton John, David Bowie, Michael Jackson, entre outros – para acompanhar os sempre cativos Frank Sinatra, Nat King Cole, Ray Charles e Elvis Presley. Hoje, mortos quase todos, tornaram-se eternos.

Mas, voltando ao tema desta crônica, “Tereza da Praia”, com letra de Billy Blanco e música do magnífico Tom Jobim, foi composta em 1954 na formação da Bossa Nova, que eclodiria com força total no final dos Anos 50, com João Gilberto e a divina Elizeth Cardoso – “um banquinho e um violão”, voz pequena, melodias ricas com características jazzísticas e temas que versavam, desde sambas de uma nota só a vozes desafinadas. Para o menino criado na cultura machista desde cedo, estranhei a liberdade com que os dois homens se referiam ao objeto de afeição ao qual ambos concordavam em dividir.

Parecia natural a mim que realçassem o “corpo bonito”, a “pele morena”, o “nariz levantado”, “os olhos verdinhos”, o “cabelo castanho, uma pinta do lado” – características físicas externas atraentes desde sempre para qualquer homem, inclusive para este imberbe sem experiência no contato feminino, a não ser em sonhos e figuras imagéticas da TV e Cinema. Minha profundidade rasa impedia que vislumbrasse algo mais por baixo dos sorrisos bonitos e trejeitos sedutores. Aliás, são poucos os homens que ultrapassam o superficial, mesmo depois de adultos. A atitude liberal dos contendores pela atenção da amada Tereza era algo totalmente inédito na cultura machista do brasileiro.

“É a minha Tereza da praia
Se é tua, é minha também
O verão passou todo comigo
O inverno pergunta com quem…”

Os namorados concluem que a namorada não deveria “pertencer” nem a um, nem a outro. Decidem deixá-la “aos beijos do Sol e abraços do Mar”, que “Tereza é da praia, não é de ninguém”. Uma figura livre e independente. A canção de 65 anos antes, foi regravada recentemente por Roberto Carlos – outra grande influência minha – e Caetano Veloso, de forma mais leve e casual. O lançamento original fez grande sucesso e trazia alguns detalhes que apimentavam sua composição: havia certa rivalidade entre Dick Farney, maravilhoso pianista e cantor e Lúcio Alves, de voz de veludo, dos quais era fã; o nome Tereza era o mesmo da esposa de Tom Jobim, referência que pareceu uma homenagem ousada. Além dela, especulava-se quem poderia ser Tereza, entre as muitas frequentadoras das praias do Leblon, onde se passava a história. Mais tarde, Billy Blanco chegou a fazer outra canção com o mesmo nome, mas segundo relatou, não se tratava dessa mesma, adindo que aquela não fora baseada em ninguém, especialmente.

Contudo especial Tereza se tornava ao representar uma mulher irreprimível, que apenas por seu desejo ficaria com alguém. Não se compromissava em destinar sua atenção somente para um dono-destinatário. Quem quisesse “tê-la”, que se conformasse com parte do tempo apenas. Anunciava a mulher libertária – ainda que se unisse oficialmente a um homem – isso não daria a ele a chancela de transformá-la em objeto de pertencimento, física e mentalmente, a não ser que quisesse. Seria o prenúncio de um mundo novo, novas diretivas, uma nova tendência, se atualmente não víssemos o tempo retroceder para muito antes de nascermos.

https://youtu.be/gC-7RAAOQbI

Falta Ou Complemento?

Falta I
Família Ortega – Eu, Romy, Lívia, Ingrid e Tânia

Em um relacionamento, o que devemos buscar no outro? O que nos falta ou o que nos acrescenta? Qual a base de avaliação que temos para dizer o que nos falta? Qual o parâmetro para dizermos que algo nos foi acrescido com aquela pessoa que queremos ao nosso lado? Desejamos a calma da estabilidade conformada ou a trepidação de uma convivência sempre em evolução para o desconhecido? Desejamos a paz dos mortos ou o calor da ebulição dos vivos? Devemos viver a dualidade do ser – prazer e dor – ou a unidade de Ser e nos perdermos no Todo, sem identidade?

Todas essas perguntas e muitas outras, eu me fazia quando garoto, principalmente quando eu comecei a crer, por volta dos dezesseis ou dezessete anos. Eu me tornei vegetariano, decidi ser celibatário e abdicar dos prazeres do mundo. Eu nunca havia experimentado o sexo e, para mim, parecia ser natural não experimentar. Cria que evitaria me envolver em uma espiral de problemas que todos viviam sem solução aparente.

Ter família, trabalhar para sustentá-la, abrir mão de projetos individuais para projetar-se no mundo em busca de sustento, parecia não ter sentido para mim. Eu havia me tornado um monge sem hábito. Experimentava reunir palavras de todos os tempos e lugares, personagens que procuraram a Luz, livros que ensinavam o Caminho, as várias faces do Saber dos Mestres – Cristo, Buda, Confúcio, Maomé, os filósofos de todas as tendências – e erigia uma crença individual baseada na intuição pessoal, que me eram confirmadas principalmente nos momentos de solidão. Ficar sempre sozinho, fechado em meu quarto, apavorava a minha mãe. No entanto, também gostava de jogar futebol, ir ao cinema, assistir programas de televisão, ouvir música, escrever, desenhar e ler tudo o que caia em minhas mãos. Quem sabe onde encontraria o novo conhecimento que me revelaria a mim?

Quando fui visitar o Seminário de Agudos onde, eventualmente no futuro, eu faria a preparação para me tornar frei franciscano, não esperava que fosse ali que encontraria outra resposta… O resto da história, este pai de família, casado oficialmente há 30 anos, completados hoje, ainda está a contar. O caminho que tomei, foi o caminho que tomei e não exercito o jogo do “se”. Não me arrependo de nada. Festejo a vida. Beijo a face do Tempo e anseio me encontrar preparado para seguir além, quando for o tempo…

BEDA / Eu Sei Que Não Sou Gay, Porque Não Transaria Com O Chico

CHICO BUARQUE

Durante uma conversa informal entre mim e a Tânia, houve a menção do nome do Chico Buarque de Holanda, um cara tão talentoso, sensível, inteligente quanto bonito, mesmo agora, na faixa dos 70 anos. Não sei a propósito de que apareceu o Chico em nosso diálogo (as mulheres podem nos acusar, com razão, que às vezes não prestamos atenção ao que dizem, se eu não fosse normalmente disperso), mas compartilhamos a admiração que sentimos por ele, incluindo o fato que não seria mesmo nada fácil resistir à atração que aqueles olhos azuis exerceriam sobre ela, como mulher (isso incluiria a sua atratividade masculina) e a mim, como um fã de suas composições – músicas, letras. Ainda não tive contato com a produção do autor literário, mas sei que ele está sendo bem recebido também nessa seara.

Comentando sobre o poder sedutor buarquiano, que englobaria não apenas sua aparência física, como também história de vida, talento e capacidade para a criação de temas que sob sua visão, mesmo as pessoas mais comuns, ganham dimensões de seres sobrenaturalmente belos, Tânia especulou que talvez não resistisse a esse apelo e, brincando (espero) disse que iria com ele. Entrando na brincadeira, eu disse que chegaria a apreciar a aquisição de um chifre tão honroso… Afinal, seria um corno “by Chico”!

Compreendo perfeitamente que projetamos, para além da pessoa humana, qualidades excepcionais que deslocamos do campo ideal para o corpo de um homem ou de uma mulher. Nós dois entendemos que a paixão é algo que se refere mais a quem a sente do que a quem seja objeto dela. No entanto, o Chico parece ser um daqueles homens que abarcam todas as possibilidades de ser, além de uni-la à beleza material despejada para os circunvizinhos por seus olhos de fundo marinho.

Sei que não sou gay porque se fosse para desejar a um homem, ele seria o cara. Porém, contento-me em conversar com a obra realizada por ele. De maneira diversa, sei que muitas mulheres e alguns outros tantos homens desejariam muito mais do que isso. Gostariam de ultrapassar as barreiras possíveis que se interpusessem entre eles e ficariam com a sua palavra, a boca que as proferisse e o resto do seu corpo.

Em sua homenagem, creio que possa absorver o sua paixão pela vida, assumir o espírito de sua compaixão e declarar-me a ele, como se mulher fora, como em tantas canções que compôs, olhando olhos nos olhos, diria: “Nos seus olhos, caso pudéssemos mergulhar sem medo, encontraríamos a poesia que eles arremessam por nossas vidas a fora. Lá, encontraríamos mil perdões, as mulheres de Atenas e a Geni, a mãe do guri e o meu caro amigo (vivo), João e Maria, o bêbado da construção e todos os membros da banda, Ritas, Rosas, Beatrizes e Carolinas, Anas, Angélicas, Bárbaras e Terezas, a roda viva de nosso cotidiano, os futuros e as futuras amantes, as moças das vitrines e das que estão atrás da porta, gente humilde e os anos dourados, o cálice e a tatuagem, o que será, com açúcar e com afeto e, apesar de você tanto amar, encontraria, pelo menos, um pedaço de mim…”.

BEDA / El Reloj

El Reloj

Como nunca antes, ele chegou na hora marcada. Dois minutos antes, na verdade. Sempre que programavam em se encontrar, inevitavelmente algo surgia que o impedia de cumprir o horário dos encontros entre os dois – as crianças, a mulher, o cunhado fanfarrão, empregados da sua empresa ou alguma outra coisa. Ele a conheceu em um curso de dança de salão e logo os sambas, as salsas, os tangos e, principalmente, os boleros, os uniram. Ela, uma mulher alegre e franca, atraiu a sua atenção logo que a viu. Da parte dela, aquele homem desengonçado e tímido, parecia ser o último tipo que pudesse ter um traço especial que o distinguisse e, por isso, se sentia segura em poder tê-lo como um par mais constante no aprendizado dos passos básicos do bailar.

Mas a solidão, acompanhada de muitas pessoas de um e a ausência de carinho do marido de outra, os levaram, em cada volteio e gingado, a se encontrarem no mesmo compasso. O ritmo de suas vidas impedia que estivessem mais tempo juntos, além das duas ou três horas, mais as duas aulas de 50 minutos por semana que passavam juntos. Quando podiam estar sós, cumpriam um lúbrico ritual de corpos que buscavam se confirmar vivos, como se fossem as últimas pessoas sobre a face da Terra. Uma vez por mês, a turma do curso buscava alguns dos bailes promovidos na cidade para por em prática a evolução no aprendizado e já caíra na boca do povo a possível união amorosa do casal de dançarinos.

Porém, naquele dia de sua inédita pontualidade, ele estava decidido a encerrar essa parceria de dança. Em sua cabeça, tocava “El Reloj”, uma das suas canções favoritas e que simbolizava o ponto de encontros entre os dois, realizados invariavelmente junto a um relógio no velho centro. Sentia o coração apertado, a amava demais, mas precisava dizer adeus. Tudo muito clichê e perfeitamente doloroso. Ele sabia que estava decretando a morte de sua melhor parte e “Nosotros” passou a pontuar a sua lembrança. No caso, o autor daquela canção estava gravemente doente e quis terminar o seu romance sem que a amada soubesse do fato. Pretendia preservá-la do sofrimento que seria o acompanhamento da sua lenta e triste agonia. Não era essa a sua motivação.

http://www.youtube.com/watch?v=rxt_ftkGrcw

Conforme pontuava os momentos passados juntos, os boleros que ambos dançaram tantas vezes pareciam ganhar a proporção de profecias realizadas em épocas tão remotas sobre o que aconteceria em suas vidas. “Historia De Un Amor”, por fim, impôs o melancólico fraseado em sua mente. Rapidamente, concluiu que a dança o havia libertado de homem preso às convenções do 4/4. E um quarto nunca lhe parecera tão pleno de significados. De repente, inversamente ao que pretendia a princípio, percebeu que não precisaria viver os dramas retratados em tão belas e doloridas canções, mas apenas dançá-las. E compreendeu, igualmente, que aquela dançarina deveria ser o seu par, mesmo que tivesse que vivenciar todas as contradições de ser um homem dividido. Ao vê-la chegando ao seu encontro com o mesmo sorriso franco de costume, simplesmente a beijou e perguntou: “Vamos?”…