Coleção “As Idades” / As Chaves / 53 E 60

Mestre Yoda, ajudando a me concentrar…

“Tenho tido pequenos lapsos de memória. Tenho me dispersado frequentemente ao realizar tarefas básicas. Eventualmente, tenho até esquecido de comer. No entanto, a não ser que tenha sido levada por seres alienígenas ou tenha entrado por uma porta interdimensional, uma coisa eu garanto: as minhas chaves de casa estão em algum lugar sobre a face da Terra!” — 2014.

Escrito em 2014, no parágrafo acima descrevo uma circunstância comum na vida muita gente, de tal forma que as respostas dadas a ele relatava vários casos como esquecer o óculos de leitura na própria cabeça, trocar os itens de compra no supermercado por outros que já tinha em casa, deixar o celular perdido em algum ponto. Quando eu ainda tinha telefone fixo, uma das suas únicas utilidades (além de receber propagandas) era o de ligar para o celular para saber onde o havia deixado. Outros brincavam dizendo que era a idade que provocaria esses lapsos.

Pode até ser que estivesse piorando, mas o que sei é que sempre fui disperso. Isso me propiciava diversas situações embaraçosas que faziam com que me isolasse cada vez mais. Preferi evitar conviver mais de perto com as pessoas para não criar pretextos para discussões. Era usual eu me perder em divagações em meio a conversas com parentes e amigos. Na escola, buscava me concentrar o máximo possível e, no meu trabalho, descobri que conseguia manter a atenção redobrada, levando tudo a bom termo. Na escrita também fico tão envolvido que todas as experiências vividas ou intuídas fluem em prol da sua elaboração. Os textos, após ser entregues, os esqueço. Aos relê-los depois um tempo, muitos ressurgem como se fossem inéditos para mim, que os escreveu.

Minha dispersão é estimulada algumas vezes pelo encantamento por palavras ditas ou lidas a esmo, além de cacos de lembranças ou visões que me levam para longe — um efeito reverberante, inexplicável e imprevisível. Até provar para o meu interlocutor que minha desatenção não é proposital, o estrago já está feito. Ao mesmo tempo que saiba que isso possa ser prejudicial às minhas relações, eu receio que ao tentar reverter esse sintoma (seja lá de que forma for) que me ajuda na redação meus textos, eu perca a capacidade de captar esses estímulos, o que acaba por tornar-se quase uma dependência.

O isolamento provocado pela Pandemia de início propiciou o tempo necessário para escrever. Porém, a falta de contato com a vida em movimento foi reduzindo paulatinamente os estímulos que colaboravam para um melhor desenvolvimento de meus temas. Receber referências indiretas — por livros, filmes, músicas, artes plásticas — são desejáveis igualmente, mas sempre preferi beber na fonte do cotidiano humano que apreendia através da minha percepção. Passei por uma crise criativa, muito parecida por ocasião da doença e morte de meu pai, três anos antes.

Encontrar as chaves que possam deixar abertas as portas da minha percepção como escritor enquanto consiga conviver sem parecer alguém com sintomas escapistas inconciliáveis requer um esforço grande, mas necessário. Ainda que me sinta desconfortável em compartilhar minhas embaraçosas idiossincrasias pessoais, praticar a escrita ao revelá-la torna-se um duplo exercício de criação e auto perdão que me trazem prazer e certa redenção.

B.E.D.A. / Vovô Viu O Avião A Voar*

Após alguns dias seguidos de trabalho intenso, com poucas horas dormidas, eu estava em um estado de torpor que transitava entre a realidade e o sonho. As imagens em minha volta se sucediam como quadros oníricos, maravilhosamente ajudados por um amanhecer roseado do décimo mês do ano. Este Outubro, especialmente, estava mais libriano do que o habitual, em sua característica mais incômoda: indeciso. A Primavera a espalhar pólens e luzes difusas concorria para que tudo rompesse em possibilidades de ser estados passageiros.

Mentalmente, estava a brincar com os dados visuais que se apresentavam ao meu redor: asfalto, prédios, árvores, céu, carros, cores, vento, nuvens… e o Sol nascente… De carona no veículo, como sempre (pois não dirijo), sentia os objetos a me atravessarem enquanto passava por eles. Antes de uma faixa de segurança, parado no sinal vermelho, um avião cruzou o meu olhar, quilômetros acima, em voo para algum lugar… Escrevi no meu caderninho mental: “Vovô viu o avião a voar…”. Era apenas um jogo de palavras, uma aliteração em “V”, como muitas que fazia, na maioria das vezes sem sentido, mas que me divertia.

Em algumas ocasiões, levo a sério algumas das frases que se formam a esmo. Fico a especular o que poderiam significar subjetivamente. Analisei aquela formação especificamente e me dei conta que estando na idade em que muitos de meus contemporâneos são avós, eu não o era. Brinco frequentemente com as minhas filhas sobre essa possiblidade, contudo, oficialmente, não levo sequer em consideração que isso venha a acontecer tão cedo. Mais radicalmente, muitas vezes especulo que talvez isso nunca aconteça… “Vovô viu o avião a voar…”. O meu irmão, de certa forma, já poderia ser considerado avô, já que acabou de criar os filhos pequenos de sua primeira esposa e dois dos três deles já geraram herdeiros. Porém a prestar atenção ao trânsito em terra, condutor que era do nosso transporte, não foi ele a ter visto o avião.

Certamente, eu me referia a mim como sendo um avô de netos que viajavam de carona na imaginação da minha existência imponderável (e aparentemente sem sentido). Mais o tanto desse fluxo oral silencioso me despertou do estado quase catatônico. A conversa comigo injetou certo ânimo amargo. Especulei…  será que bem lá no fundo eu acredite que a minha vida apenas apresentaria algum sentido se eu testemunhasse os meus genes passarem adiante?

Ao me referir ao Humberto como um avó, não levei em consideração que sua filha consanguínea, gerada em seu primeiro casamento, perfilava com as suas primas, minhas filhas, não especulam que, para se sentirem mulheres completas, não precisam gerar uma prole e constituir uma família tradicional. Todas foram criadas para que não adotassem os parâmetros sociais patriarcais como sendo seus. Se um dia as minhas filhas vierem a me dar netos, será porque quiseram. E o farão por elas, não por mim. São independentes o suficiente para optarem por quaisquer caminhos, cada vez mais longe da cartilha ditada por nossa sociedade.

Ao me dirigir (ou estar sendo dirigido) para a minha casa, aproveitei a minha personalidade libriana e decidi virar o disco, para usar um termo antigo (lembrem-se, tenho idade para ser avô). Percebi que os rumos da minha vida estavam abertos em direção e sentidos. Isso era bom em mais de um sentido. Objetivamente, a própria contingência de poder ver, um dia, nascerem pessoinhas ligadas a mim por laços genéticos não deveria considerar particularmente importante. Ou, por outro lado, deveria considerar tão importante quanto qualquer nascimento de qualquer criatura existente no mundo. Na significação que tal acontecimento representa de precioso por fazer parte da grande aventura humana. Pensei na beleza e não apenas na porção acre que é estar presente neste mundo em Outubro de 2016, de Primavera oscilante, libriana, em que algum vovô, que não eu, deverá a estar ver, em algum lugar, aviões a voar… os apontando para seus netos.

*Texto de 2016. Atualmente sou avô de Domitila, filha da Romy; do Bambino, da Ingrid e de Lola, da Lívia. Todos, seres peludos de quatro patas.

Participam do B.E.D.A.:
Cláudia Leonardi
Adrian Aneli
Lunna Guedes
Roseli Pedroso
Mariana Gouveia
Darlene Regina

O Ledor

Ledo engano imaginar que ledor leia apenas a dor. Ledor lê o desengano, a alegria, a raiva, a tristeza, o amargor, a lida e o suor. Lê o amor e seu contrário o vazio. O ledor lê o crime, a bondade, o cenário, a incapacidade de estar, a vontade de ficar ou viajar. Lê a engenhosidade do escritor, sendo que a maior é não identificar, quando o lê, o engenho da criação. Quando sente cabalmente o seu efeito sobre si e se identifica com o que lê. Ao mesmo tempo, o escritor escreve também para si e fica contente quando percebe que se encanta com o seu próprio canto e o toma como se não fosse seu. Sente-se bem e angustiado. O escritor se pergunta conseguirei voltar a criar uma obra, um texto, um parágrafo, uma linha que me abandone e se torne autônoma de mim?

Apôs começar o ano como programei — lendo uns quinze títulos em dois meses — voltei à secura dos olhos. Não que não tenha lido muito. Seria insuportável para mim. Mas pegar um livro entre as mãos e seguir às páginas com gosto e periodicidade, deixou de ser uma prioridade, enquanto retomava a rotina inóspita do saariano tempo pandêmico. Escrever, escritor que me nomeio, igualmente se tornou penoso, porque criava mesmices e sensaborias. Aliás, criar já é algo pretencioso demais. Os escritores, os melhores de nós, creio alcançarem apenas jogar luz sobre os recônditos cantos de paredes da casa onde habitamos. O que já é um grande talento. Artistas fora de padrão conseguem transfigurar de forma aguda uma realidade que, de paralela, se impõe como existente.

Quando mais moço, lia frequentemente e não havia lugar que não fosse bom o suficiente para me entreter com os livros. Conseguia me apartar da conjuntura externa e me tornar invisível. Quando gostava do tema, mergulhava fundo nas palavras e me enxergava atuando com as personagens. Ainda que o livro não fosse tão interessante, a curiosidade era suficiente para me conduzir para longe de onde estava. O caminho que seguia pertencia a uma dimensão particular. Atualmente, tenho que buscar silêncio e condições mínimas de paz de espírito para que consiga ler. Gostaria imensamente de voltar a ser o mesmo de antes. E o relógio não para de tiquetaquear. O ledor está cada vez com menos tempo de vida terrena para degustar outras formas de vida pela leitura. Resta perguntar: na paz da morte teria como continuar a ler?  

Maratona literária Interative-se de maio
Isabelle Brum / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes

Meu Scenarium — Varanda Para Abrigar O Tempo / Equação Infinda

Bijoux e as obras da Scenarium…

Estou passando uma temporada em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Sem atividade no meu setor de trabalho por conta da Pandemia de Covid-19, decidi sair um pouco da rotina de tarefas caseiras a que estava atrelado, como se fosse um trecho de música repetido vezes sem fim em que a agulha do toca-discos fica presa numa faixa do Long Play arranhado — imagem propositalmente anacrônica — saudade.
Aqui, tenho contato com o mar, a paisagem exuberante, os cursos d’água inesperados, cachoeiras a serem visitadas, a força líquida que me preenche e me carrega.

Trouxe para cá livros diversos, incluindo os da Scenarium recém-lançados. Todos, escritos por mulheres. Nos dois últimos dias, li dois de enfiada. Aleatoriamente, ontem escolhi primeiro o de Roseli Pedroso — EQUAÇÃO INFINDA. A história de três mulheres — Carminha, Lígia e Verônica — vividas em épocas sequenciais, em que se estabelece uma linha de conexão tênue, mas fundamental. Contadas por cada uma das personagens em primeira pessoa, em estilo de diário, seus dramas atravessam estações climáticas de anos alternados conduzido com maestria por Roseli. Ela consegue criar o vínculo que nos leva para dentro de suas almas. Essas mulheres, que surgem aparentemente frágeis, não sucumbem ao abandono, ao amor roubado ou à intempérie libertária.

Viver é sempre perigoso, ainda que estejamos abrigados em uma casa confortável ou soltos na vida, sem eira nem beira, por desejo ou fatalidade. Ou ainda que estejamos perdidos dentro de quartos bem decorados, sem controle de sua própria vida, presos a convenções. Capazes de emular sentimentos em palavras que ganham a eternidade de um voo:

“Capturei a atenção
De uma mosca
Troquei olhares e
— perguntei
por onde andará
— aquele
Que não ouso expressar?”

Hoje, li VARANDA PARA ABRIGAR O TEMPO, de Aden Leonardo. Através de meses subsequentes, a partir de Abril, em que os dias tanto podem ser numerados quanto intitulados como “dia que esqueci”, “dia que perdi” ou “dia dormido: Domingo é gato emboladinho”, ela passeia sua imensidão de nada. Como masoquista, a cada página virada, fui me viciando nas agulhadas na pele feito uma sessão de acupuntura inversa que em vez de curar provocava dores que nem eu sabia que poderia sentir e esperavam apenas serem despertadas.

“Acho que viver é por aí. Olhar os farelos e não espanar. Porque dói. Depois, tudo se ajeita e a gente varre. De tarde… ou vem passarinho. A TV falava outras notícias ruins. E finalmente não era eu!” — Essa sentença era eu, hoje, agora! — em 5 de Fevereiro de 2021.

Cansado de estar só, me vi abrigado em uma varanda de Julho: “Um dia de recolhimento de quando tudo acaba. Deitar de conchinha sozinha no lado direito… encolhida no que restou. Beiras.” — Será que a Aden me espiona?

Já disse que me viciei na dor que esse livro me provocou? Certamente terei que voltar a lê-lo pelos cinco meses que percorridos, de Abril a Agosto, este último, o único que merece ter seus dias marcados diariamente, sendo que o dia 5 é deferido com dois “temas”, sendo um deles “Dia Triste”. Mas na primeira legenda, ao seu final, encontrei outra frase que me posicionou ou seria “reposicionou”? — “Ando perdendo significados. Ando ressignificando.”

Ainda lerei Mariana Gouveia e Lunna Guedes que, junto a Roseli e Aden e Kátia Castañeda, são criadoras de belas obras do selo Scenarium Plural Livros Artesanais. Que eu faça parte desse grupo de autora(e)s já me enaltece. No intervalo entre um banho de mar e outro, deixei as areias da Praia Grande de Ubatuba e mergulhei em vidas maravilhosamente bem construídas-descontruídas como se misturassem à passagem da brisa marinha. Nem usei as fitas de marcação de páginas, úteis apenas para as brincadeiras do Bijoux. Fiquei com a certeza de que, na outra encarnação, quero nascer mulher-escritora-da-Scenarium.

Copo Quebrado

Mensagens de amor*

No armário onde guarda a louça, a mulher solitária reserva uma parte para copos rachados ou quebrados. Muitos, marcados por substâncias cristalizadas por conteúdos derramados de seu interior. Ela sabe dizer quando e de que maneira cada um daqueles utensílios foram usados e avariados. Transparentes, em sua concepção original, os objetos apresentavam por dentro linhas descontínuas e desenhos aparentemente desconexos, mas que representavam, para D. Martha, mensagens de seu filho morto.

Seu marido, sem saber como lidar com a criação de um mundo de simbolismos vazios, segundo cria, depois do passamento de Maurinho, acabou por se afastar da casa e apenas uma ou duas vezes por semana, visitava rapidamente para verificar como se encontrava D, Martha. Mauro contratou uma auxiliar doméstica que cuidava da sua alimentação, limpeza e arrumação da casa onde a família viveu por vinte anos, com a recomendação de que nunca se aproximasse do santuário.

Maurinho, a partir dos 15 anos, começou a deixar cair o que pegava. De início, como estava atravessando pela adolescência, os pais acharam que fosse devido ao estirão. Menino grande, estava a ultrapassar a altura do pai, que já era bem alto e já estava a se destacar no basquete. Melhor jogador do time, a acentuada queda no índice das cestas de três pontos, sua especialidade, fez com que começasse a ficar deprimido.

Os pais, preocupados, realizaram exames que revelaram uma severa doença neurológica progressiva, com evolução acelerada. Na casa de Maurinho, enquanto Seu Mauro buscava alternativas e estímulos para deixar a vida do filho mais confortável, Dona Martha preferiu ver acumular os cacos dos copos que insistia em dar ao filho. Com toda a certeza que o amor podia lhe dar, na falta de palavras que pudesse proferir, para ela, aquelas eram revelações de seu filho que passaria o resto da vida tentando decifrar.

*Tenho quebrado copos