
Estou passando uma temporada em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Sem atividade no meu setor de trabalho por conta da Pandemia de Covid-19, decidi sair um pouco da rotina de tarefas caseiras a que estava atrelado, como se fosse um trecho de música repetido vezes sem fim em que a agulha do toca-discos fica presa numa faixa do Long Play arranhado — imagem propositalmente anacrônica — saudade.
Aqui, tenho contato com o mar, a paisagem exuberante, os cursos d’água inesperados, cachoeiras a serem visitadas, a força líquida que me preenche e me carrega.
Trouxe para cá livros diversos, incluindo os da Scenarium recém-lançados. Todos, escritos por mulheres. Nos dois últimos dias, li dois de enfiada. Aleatoriamente, ontem escolhi primeiro o de Roseli Pedroso — EQUAÇÃO INFINDA. A história de três mulheres — Carminha, Lígia e Verônica — vividas em épocas sequenciais, em que se estabelece uma linha de conexão tênue, mas fundamental. Contadas por cada uma das personagens em primeira pessoa, em estilo de diário, seus dramas atravessam estações climáticas de anos alternados conduzido com maestria por Roseli. Ela consegue criar o vínculo que nos leva para dentro de suas almas. Essas mulheres, que surgem aparentemente frágeis, não sucumbem ao abandono, ao amor roubado ou à intempérie libertária.
Viver é sempre perigoso, ainda que estejamos abrigados em uma casa confortável ou soltos na vida, sem eira nem beira, por desejo ou fatalidade. Ou ainda que estejamos perdidos dentro de quartos bem decorados, sem controle de sua própria vida, presos a convenções. Capazes de emular sentimentos em palavras que ganham a eternidade de um voo:
“Capturei a atenção
De uma mosca
Troquei olhares e
— perguntei
por onde andará
— aquele
Que não ouso expressar?”
Hoje, li VARANDA PARA ABRIGAR O TEMPO, de Aden Leonardo. Através de meses subsequentes, a partir de Abril, em que os dias tanto podem ser numerados quanto intitulados como “dia que esqueci”, “dia que perdi” ou “dia dormido: Domingo é gato emboladinho”, ela passeia sua imensidão de nada. Como masoquista, a cada página virada, fui me viciando nas agulhadas na pele feito uma sessão de acupuntura inversa que em vez de curar provocava dores que nem eu sabia que poderia sentir e esperavam apenas serem despertadas.
“Acho que viver é por aí. Olhar os farelos e não espanar. Porque dói. Depois, tudo se ajeita e a gente varre. De tarde… ou vem passarinho. A TV falava outras notícias ruins. E finalmente não era eu!” — Essa sentença era eu, hoje, agora! — em 5 de Fevereiro de 2021.
Cansado de estar só, me vi abrigado em uma varanda de Julho: “Um dia de recolhimento de quando tudo acaba. Deitar de conchinha sozinha no lado direito… encolhida no que restou. Beiras.” — Será que a Aden me espiona?
Já disse que me viciei na dor que esse livro me provocou? Certamente terei que voltar a lê-lo pelos cinco meses que percorridos, de Abril a Agosto, este último, o único que merece ter seus dias marcados diariamente, sendo que o dia 5 é deferido com dois “temas”, sendo um deles “Dia Triste”. Mas na primeira legenda, ao seu final, encontrei outra frase que me posicionou ou seria “reposicionou”? — “Ando perdendo significados. Ando ressignificando.”
Ainda lerei Mariana Gouveia e Lunna Guedes que, junto a Roseli e Aden e Kátia Castañeda, são criadoras de belas obras do selo Scenarium Plural — Livros Artesanais. Que eu faça parte desse grupo de autora(e)s já me enaltece. No intervalo entre um banho de mar e outro, deixei as areias da Praia Grande de Ubatuba e mergulhei em vidas maravilhosamente bem construídas-descontruídas como se misturassem à passagem da brisa marinha. Nem usei as fitas de marcação de páginas, úteis apenas para as brincadeiras do Bijoux. Fiquei com a certeza de que, na outra encarnação, quero nascer mulher-escritora-da-Scenarium.
Honrada demais com sua leitura e resenha . Seu olhar, o mergulho que fez, não somente nas águas salgados desse litoral em que se encontra mas também, nas vidas e personagens dos livros lidos.
E vamos escrever mais e mais e mais…
Eu cheguei a imaginar que havia tomado algumas liberdades quanto ao conceito de vitrines. O seu texto e imagens me absolveram. Vivemos todos em um grande mostruário, sendo ofertados como objetos de consumo. Cabe a nós não aceitarmos e fazermos a revolução dos manequins!