casas no morro penduradas
sem calçadas portas dando para a rua
apesar de tudo ainda temos a Lua
ao nascer do dia de pessoas enregeladas…
Etiqueta: portas
#Blogvember / Desmemoriado
Eu me lembro de meus sonhos de infância, mas a própria vivência infância está envolta em nebulosidade. Várias das minhas lembranças entraram para a galeria de memórias em suspeição – sonhos ou vivências? Que não melhorou com a chegada da adolescência. São recorrentes os momentos em que evito encontrar colegas de escola por não me lembrar de seus nomes. É comum começarem a descrever situações que lembram como se tivessem acontecido ontem, enquanto eu mal me recordo de episódios recentes. Não que seja de todo desmemoriado. É que a minha atenção recai sobre assuntos e episódios totalmente aleatórios, muitas vezes sem importância ou conexão com circunstâncias importantes. Com isso, costumo chamar a minha memória de “randómica”.
Como consequência, acabo por me ver envolvido em discussões que tem os seus bons motivos: não me lembrar de coisas relevantes para as pessoas com as quais convivo – colegas, amigos, familiares – próximos ou não. É como se eu não desse a mínima para eles. E por mais que seja involuntário, não deixo de sofrer com isso. Essa dispersão-suspensão de fatos no tempo talvez tenha explicação – sintomas de TDA – que eu consideraria leve. Esse autodiagnóstico leva em conta que eu consiga me concentrar no trabalho e quando escrevo, ainda que os padrões não se assemelhem quando comparo essas atividades.
No trabalho, consigo planejar todas as etapas, horários e uso de equipamentos. Bem, vez ou outra, o nosso sistema de checagem e re-checagem falha. Na escrita, parto de ideias que surgem de repente ou de bases bem definidas, pré-estabelecidas. Apesar de, nas duas vertentes de produção, frequentemente me deixar viajar na construção do texto, busco demonstrar certa unicidade no estilo.
Essas duas funções – de prestador de serviços e escritor – são como ilhas no meio do oceano revolto ou um oásis no deserto. Consigo lhe dar com os problemas que surgem como se soubesse de causas e consequências. No trabalho, a norma tem sido o de resultados exitosos. Na escrita, tenho conseguido chegar aos finais em série com satisfação. Ainda assim, o sentimento é o de constante esforço no sentido de aprimorar os mecanismos de execução e a conquista de melhores textos.
Mas eis que após o término dos eventos, não fosse a gravação e a produção de fotos que venham a recordá-los, as várias etapas são dispensadas para o porão da memória, a não ser que tenha ocorrido alguma falha. Nesse caso, as uso como aprendizagem. Quanto aos textos, então, acho que nunca deixamos de reescrevê-los. Alguns “são” o que “são” ou ficam como ficam. Outros, “merecem” melhor sorte. Principalmente, depois que os relemos. A minha desmemória ajuda a torná-los muitas vezes “inéditos”. É comum me surpreender com histórias que sei que escrevi como se não as tivessem escrito.
Essa nuvem passageira que é a coleção de minhas recordações evanescentes, apresentam as suas dificuldades. Fico a imaginar se esses recortes de situações díspares não seja uma forma de defesa contra eventuais traumas. Na confecção de um de meus livros, cheguei a abrir portas emperradas de quartos fechados e não tive coragem de ir adiante. Quem sabe, um dia, eu consiga estar preparado para mergulhar em mim…
Foto por Ekaterina Astakhova em Pexels.com
Participam: Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso
B.E.D.A. / Fome De Pedra
Eu não sei o que acontece, mas não são poucas as vezes que eu sinto uma tremenda vontade de abocanhar esta cidade de asfalto e pedra!
Degluti-la quase toda e a vomitar inteira, renovada e rediviva.
Quando a vejo tão aparentemente desabitada, como nesta manhã de domingo, ainda sei que por trás de suas paredes, portas e janelas, o drama da vida se apresenta implacável e comovente…
Amores acordaram abraçados…
Traições foram postas à luz…
Amizades passaram a noite insones apenas no bate-papo livre e sem rumo…
O desejo de ser feliz pode ter encontrado guarida nos peitos e as paixões nos corpos. ..
Ou, tristemente, podem ter se perdido entre os desvãos dos prédios e das ruas sem saída da Metrópole insana que desperta…
*Manhã de um domingo de agosto de 2016.
Participam do B.E.D.A.:
Lunna Guedes
Adriana Aneli
Cláudia Leonardi
Mariana Gouveia
Roseli Pedroso
Darlene Regina
Partido
Parti de lá, pensando em não voltar…
Sofrimento, perdas, encontros desencontrados,
beijos não dados,
desejos calados.
Foi minha casa, meu lar, meu particípio passado,
presente aberto,
futuro ameaçado.
Janelas, todas, abertas para o horizonte.
Portas, duas, sempre exploradas como entradas e saídas,
sem superstições.
Na rua pouco iluminada, gostávamos de ver estrelas
em céu de campo plano e arborizado.
Cerca branca de madeira
— cenário de filme romântico —
idealizado.
Mas as brigas ganharam peso, som e fúria.
Éramos dois sem medo de magoar,
sem desejo de cura.
Queríamos matar o amor tanto,
que nos matava.
O quarto sempre iluminado como um quadrilátero de luta.
A Lua perdendo foco, ainda que cheia, a empalidecer —
luz cada vez menor, mesmo quando crescente.
Saí, saindo, findando em mim, em si, lá…
Sem retornar fisicamente, continuo a recordá-la
de tal maneira que a carrego comigo
— uma casa inteira —
onde não mais moro,
sendo por ela habitado…
Foto por Tom Tookl
Projeto Fotográfico 6 On 6 / Portas Dão Samba
Eu me lembro de um samba de Luiz Ayrão pelo qual me apaixonei assim que eu o ouvi. Ainda que fosse uma canção dedicada a Escola de Samba da Portela e eu fosse um fã da Império Serrano; ainda que eu fosse um garoto de 12 anos, inexperiente e tímido, me identifiquei com a imagem do coração escancarado: “Pela porta aberta / De um coração descuidado / Entrou um amor em hora incerta / Que nunca deveria ter entrado / Chegou, tomou conta da casa / Fez o que bem quis e saiu / Bateu a porta do meu coração / Que nunca mais se abriu”. Portas são para isso — servem para entradas, saídas, poemas, romances e canções.
Em uma brincadeira antiga se perguntava: “Por que um cachorro entra na igreja? Ora, porque a porta estava aberta”. Não mais, em muitos lugares. A igreja era terreno sagrado tanto para os malfeitores quanto para os vampiros. Diante do aumento da violência, mesmo em cidades pequenas, há horários específicos para que seus portais sejam abertos e fechados. Atualmente, as orações tem tempo marcado. No começo de outubro, fui cumprir um contrato pago antes do advento da Pandemia de Covid-19. Foi o primeiro evento depois de meses inativo. Realizou-se em lugar aberto, com poucos convidados, no Sul de Minas, onde registrei a imagem acima. Cumprimos todos os protocolos de segurança e estou aqui para contar a história.
Há pórticos, portas ou portais que não precisam serem abertos para nos mostrar o exterior. Envidraçados ou vazados, a visão externa se nos apresenta em recortes como telas de cinema, a vigiar os passos de quem passa pela ruas. Carros passeiam pelo leito carroçável e desconhecidos se tornam personagens de comédias ou dramas mudos. A luz projeta sombras e para quem viaja nas linhas de versos ou prosas, criam caminhos de infindáveis labirintos nos quais acabo por me encontrar…
Portas que fazem igualmente a função de janelas, já que a saída não lhe dá uma saída viável, a não ser você seja um pássaro ou um suicida. A possibilidade de sair sem ir a lugar algum não é uma deferência de portas em varandas elevadas. Muitas vezes, ao sairmos, não temos para onde ir, mesmo que tenhamos liberdade para isso. Portas, diríamos, exigem que as usemos. Que saiamos por elas. Mas nem sempre que retornemos…
Trabalhei nos últimos meses no Yellow Brick Road Garden. Ao fim do caminho dos tijolos amarelos, montamos a residência do galo e galinhas garnisés Elton John, Kim, Kendall e Kyllie. Eu abro a portinhola pela manhã e fecho depois que se recolhem — questão de proteção. Durante o dia, fazem recreação em seu jardim particular, vedado à entrada dos bichos peludos de quatro patas, que observam os bichos penados de duas com o olhar atencioso de quem gostaria de ficarem bem mais próximos do que ficam.
Para viajar, costumo fechar as portas da minha sala ao mundo exterior. Abri-la não me atrapalharia, supunha. Até que percebi que a minha atenção era presa fácil de borboletas, pássaros ou aviões, folhas farfalhantes ou cachorros com olhares amorosos. Ou qualquer outra coisa. Tenho tentado exercitar a minha atenção o máximo que posso. Não apenas para escrever. Quero sinceramente me esforçar para estar no presente da conversação, da ação, do acontecimento. Valorizar quem está comigo — o tempo em comum. Creio que essa seja a porta de entrada para viver. Ou a saída para não morrer em vida.
Certo dia fiz uma incursão ao Cemitério da Consolação. Uma enorme concentração de portas especiais — portas para a Eternidade. E a paz. Foi o que encontrei por lá… Não cruzei com quase nenhuma pessoa. As alamedas entrelaçavam-se em um emaranhado de caminhos para o passado — presente em cada conjunto das obras tumulares. A antiga família mais poderosa de São Paulo tem o maior jazigo da necrópole, feio feito um pesado prédio soviético. Acho estranho que quisessem causar admiração dos vivos, ainda que mortos. Vaidade além do túmulo. No entanto, as que mais gostei foram aquelas que jaziam em ruínas. Como a da imagem acima.
Participam desse projeto:
Lunna Guedes, Mariana Gouveia e Darlene Regina









