Seu Zé não bebia. No entanto, aquele senhor de tez escura e barba branca de Preto Véio, tinha diante de si sempre um copo e uma garrafa de cerveja. Em uma tarde de domingo dessas, lá estava ele sentado à mesa de plástico em frente à TV postada ao alto da entrada padaria, com o seu olhar que não deixava de me surpreender por sua tristeza. Entrei para comprar pão e ele ainda estava sozinho. Cercado de ausência, assim dessa maneira, nunca me pareceu tão tristonho.
Postei-me na fila das pessoas que estavam à espera da próxima fornada de pão quentinho e pude presenciar a chegada de seus colegas de tardes solitárias e que eram efetivos bebedores. Logo, o Seu Zé estava acompanhado por risadas e conversas animadas. Todos os convivas mal percebiam que o seu copo quase nunca se esvaziava, apesar da chegada das muitas garrafas. Apenas conversava e trocava gargalhadas alheias por sorrisos sutis.
Troquei de posição umas quantas vezes, a pretexto de verificar produtos expostos na geladeira e nas gôndolas, somente para observar a evolução daquele episódio da sessão da tarde. Mais um pouco, já havia demorado demais e pedi o que queria. Deixei o Seu Zé, agora rodeado de gente, mas ainda tão isolado na vida quanto antes. Eu intuí que ali estava alguém que em sua existência apenas pareceu beber dor.
… “Você me fez sofrer, você me fez chorar…” – Teria eu levantado bem mais cedo, quando despertei às 7h da manhã, e poderia ter aberto as minhas janelas, ter sentido o gostoso ar frio matutino e ter ouvido os pássaros retardatários, que ainda não teriam saído para passear de seus galhos hospedeiros, enquanto ainda teria visto as árvores do meu quintal receberem a visita dos vizinhos alados da redondeza. No entanto, voltei a dormir, ainda cansado do trabalho do dia anterior, e acordei com a música urbana, produzida pelos humanos, três horas depois. Os meus vizinhos, em dois ou três pontos, reproduziam as canções de seus gostos. Que eles acreditem que todos ao seu redor também apreciem o que ouvem, é algo que não consigo entender…
“Você me fez sofrer, você me fez chorar…”. Mas, sou daqueles que tenta encontrar sempre um propósito em tudo, além de ter a horrível tendência em construir enredos para análises sociológicas em cada movimento dos seres da minha espécie biológica. Ainda garoto, pensava em me tornar um asceta, me refugiar em alguma montanha ou vale esquecido e fugir das pessoas, pois convictamente, me sentia um ET. Atualmente, vivo em um vale, cercado de morros, na Periferia de São Paulo, sei que sou um ser gregário, que estou no Mundo e que apenas na convivência entre nós, poderemos encontrar o meio termo onde reside a paz. É claro que isso em tese, porque há ocasiões que perco facilmente a estribeira. Enfim, estar equilibrado é um exercício permanente. Na guerra de sonoridades, o tema preferido girava em torno de amores mal realizados…
“Você me fez sofrer, você me fez chorar…”. Em uma época passada, o Brasil viveu uma fase de letras riquíssimas, mormente espraiadas em sambas-canções de melodias inesquecíveis (“Meu Mundo Caiu”, de Maysa, é uma delas, por exemplo) e até poderíamos dançar ao ouvi-la, acompanhando o seu compasso lento, de rostos e corpos colados, vivenciando a tristeza de uma maneira libertadora. Hoje, se isso acontece, será sempre através de músicas com andamento acelerado, em que as pessoas dançam alegremente com um sorriso no rosto, volteando em piruetas e saracoteios.
Igualmente, no samba, que inaugurou desde os seus primórdios da popularização da música brasileira essa tendência, muitas vezes ouvimos versos destilarem o sofrimento em passos em que os pés respondem com energia e alegria à revolta que sentimos pelo amor que nos feriu. Eu me lembro de que, quando menino, virgem de corpo e alma, adorava sofrer os amores que não havia ainda vivido e Lupicínio e Elis (meu gosto era anacrônico) me faziam companhia. Hoje em dia, as referências são outras, bem menos primorosas… “Você me fez sofrer, você me fez chorar…”.
Da esquerda para a direita: Sr. Ortega, Dona Madalena, eu, Tânia, Sr. Manoel e Dona Floripes, em 1989.
Segunda-feira, a Tânia e eu fomos retirar no Cartório de Santana, uma cópia renovada de nossa certidão de casamento, a propósito de dar encaminhamento a um trâmite burocrático. Em maio, completaremos 33 anos de celebração da união oficial, mas como coloquei no texto de 2014*, que reproduzo abaixo, essas efemérides documentam linhas retas de uma história plana, sem os intermédios da vida — dores, sobressaltos, alegrias, tristezas, festas, doenças, altos e baixos, passamentos e nascimentos — fins e recomeços.
“Estará para completar, em 2014, 25 anos. Foi em 13 de maio de 1989 que celebramos a nossa união oficial, Tânia e eu. Já tínhamos um laço indissolúvel a nos unir, pois a Romy já estava sendo gestada há cinco meses em seu ventre. Para mim, assim era. Não fazia questão de cumprir as convenções formais de declarar um fato que já estava sacramentado. Mas as respectivas famílias faziam questão e como não ligava para formalidades, igualmente não objetava em cumpri-las. Dessa forma, satisfazia às pessoas ao meu redor. Foi a decisão mais acertada que tomei em minha vida. Nunca usei anéis, mas me emocionei em colocar um em minha companheira dali por diante e de ter recebido outro em meus dedos.
É bem verdade que não o usei por muito tempo, já que devido ao trabalho, acabei por torná-lo em um objeto octogonal. Tive que guardá-lo, mas uma aliança material não suplanta uma mental e espiritual. Tudo o que passamos desde então, entre altos e baixos, nos provou que estamos vivos e funcionais, qual um gráfico de eletrocardiograma nos indica. Nunca registramos um traço e, por isso, aprendemos encontrar momentos de plenitude e estabilidade em meio às variações de todas as ordens — físicas, mentais, espirituais e econômica-materiais.
Conforme propago sempre que posso e que alguém já deve ter exemplificado em algum ensaio por aí, no tempo e no espaço, prometer qualquer coisa diante do altar é sempre temerário. Quem promete naquele instante não é mesma pessoa tantos anos depois para afirmar que um relacionamento seja eterno. Apesar de o ser, para mim, ainda que o compromisso seja desfeito um dia. Afinal, o que vivemos nos influenciará pelo resto de nossas vidas. As pessoas se modificam no decorrer da existência. Um casal modifica um ao outro e a identidade do casal como tal também sofre mutações diante dos acontecimentos cotidianos. A boa surpresa é que, mesmo com todas as modificações e desequilíbrios pelos quais passamos, é possível nos apaixonarmos por aquela nova pessoa, como se uma nova pessoa fora, se bem que, naquela altura da vida, os corpos apenas se parecem com os antigos corpos que carregam o mesmo RG.
Além disso, chegam os filhos. Ora, os filhos! Com a chegada deles, aprendemos a dedicar o nosso tempo para outras pessoas que não nós mesmos. Eles são fontes de alegrias e preocupações e, quando crescem, saudavelmente fazem questão de contestar a nossa autoridade e refutar os nossos ensinamentos, Ainda que advertidos, cometem os mesmos erros que nós quando tínhamos as suas idades.
Para encerrar, me sinto compelido a dizer que o meu relacionamento com aTâniajá passa dos 25 anos oficiais que o ano de 2014 contemplará. Ele começou quando a vi pela primeira vez, magérrima e petulante, dois anos antes. Nós nos estranhamos desde o início. Recomeçou quando encetamos a conversar como gente civilizada, alguns meses depois. Recomeçou quando nos beijamos pela primeira vez, meses à frente. Recomeçou quando recebi a notícia da vinda daRomy. Recomeçou, mais uma vez, quando nos casamos. Recomeçou todas as vezes que veio à luz cada uma das nossas outras crias — aIngride a Lívia. E a partir do momento que decidi viver um dia de cada vez, recomeça todos os dias”.
Tenho por amor, a Tristeza. Eu A amo com a certeza dos amores impossíveis, daqueles épicos, inéditos, inauditos, malditos…
A minha Amada me livra da Ilusão de que o Eterno exista, de que a Vida persista para sempre, para além… Do Bem a vencer o Mal…
Eu A recebo em minha cama, faço amor com a rigidez do membro espasmódico a ejacular dores adormecidas e despertadas das minhas entranhas… Estranhas testemunhas da minha entrega sem Esperança…
Noite feita, encontrei manequins presos em uma vitrine. Eu os achei um pouco tristes, a espera de serem libertados… Ilusão! No máximo, caso isso ocorresse, buscariam ir para trás de outras vitrines. São profissionais. Atuam assim a tanto tempo que não sabem fazer mais nada. É o preço que se paga por serem eternamente jovens e belos, corpos irretocáveis, firmes e lisos. Não se importam sequer que não tenham cabeças, alguns… São bem pagos por isso. Em roupas da moda.
As vitrines são atraentes, luminosas. Muitos creem que sejam o melhor lugar do mundo para se morar. A tristeza que apresentam, de início é falsa. Faz parte do padrão. Junto a um certo ar blasé. Tudo para atrair a atenção. Assim como seria falsa a alegria que expressassem. Depois, como ficam permanentemente engessados num mesmo esgar, desconhecem seus reais sentimentos. Perderam a sensibilidade emocional. Porém, como recompensa, recebem muitas curtidas. Vivem e estão mortos por isso.