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DESEMPREGADO

Estou desempregado. Dono de meu próprio negócio, não fui eu a me demitir. Porém estou impedido, por efeito do estabelecimento da Quarentena, de exercer a minha atividade – locação de equipamentos de som e luz para eventos: festas de casamento, aniversários, eventos empresariais e promocionais, bailes de salão, etc. Filmes e novelas interromperam as gravações. Peças deixaram de ser apresentadas. Músicos, bailarinos, artistas circenses, atores, diretores, técnicos, roadies, “maquinistas”, contrarregras e várias outros profissionais na área do congraçamento, entretenimento e da celebração da cultura, da vida e da arte, principalmente aqueles que atraem um grande público, também se encontram paralisados. Seus locais de atividade – teatros, casas de espetáculos, salões de clubes, hotéis, bares e restaurantes, estão fechados compulsoriamente por decreto. Seus funcionários – garçons, servidores diversos, do setor administrativo ao de serviços gerais, estão recolhidos. Ginásios e clubes, locais onde os diversos esportes, mormente os coletivos, que empregam atletas, massagistas, preparadores físicos, administradores, entre outros, igualmente adiaram sine die suas competições. A principal delas – as Olimpíadas de Tóquio 2020 – foi adiada para Julho de 2021.

Está proibido reunir pessoas em ambientes fechados ou mesmo abertos para comemorações. Foi estabelecido o chamado isolamento ou distanciamento social horizontal. Apesar do meu sofrimento psicológico e prejuízo financeiro, já que as contas não param de chegar, sou a favor da medida. Sua adoção refletirá na diminuição do número de infectados e da mortalidade causada pela doença provocada pela pandemia do Covid-19. Os governos mais sérios, orientados pela maioria dos infectologistas mais importantes, adotaram essa mesma norma. Quem não o fez a tempo, como a Itália e Espanha, contam os seus mortos aos milhares em pouco tempo, gerando caos no sistema de atendimento nos hospitais, com leitos insuficientes de UTI e desequipados dos respiradores necessários à sobrevivência dos casos mais graves.

Apostando contra a letalidade do surto, um governante surtado, apoiado por sua equipe de entendidos apenas em jogo sujo, desenvolve uma campanha espúria para contrapor-se àqueles que adotaram as medidas mais duras e corretas no contexto que se apresenta. Apoiado na propaganda de que tiraria o País da inércia e alardeando que propiciaria um rápido desenvolvimento econômico, as medidas que paralisaram diversos setores e provocou a diminuição da produção em muitos outros foi um duro golpe em seus planos para reeleger-se em 2022. Aliás, mal assumiu o seu posto de presidente da República, JMB iniciou a campanha eleitoral para o próximo mandato. Suas ações dúbias em muitas ocasiões e claramente obtusas em outras, escudadas por declarações cada vez mais desvinculadas do mínimo bom senso, beirando a requintes de psicopatia, incrivelmente ainda encontra defensores “encantados” – na repetição de um comportamento-espelho de uma parcela da população que referendou atitudes temerárias dos governos anteriores a este.

Quando o atual quadro se aclarar e pudermos ter uma visão mais ampla do processo pelo qual estamos passando, espero estar vivo – sendo diabético, faço parte do grupo de risco – para poder contar mais histórias. Desejo que a ficção que eu produza não seja tão sem nexo quanto a realidade que se apresenta – canhestra e inconvincente. Que nos libertaremos de quem seja incapaz de empatia-solidariedade humana e se apraz em agir contra seus semelhantes por pura mesquinharia. Devemos provar que, juntos, agindo coletivamente, podemos superar estes momentos cruciais da nossa História.

Beda Scenarium

Cantora Maior

ANGELINA

Uma das maiores cantoras deste planeta e, atualmente, minha preferida, tem 13 anos de idade, é norueguesa e costuma se apresentar liricamente descalça. Seu nome? Angelina Jordan. Sua curta carreira, no entanto, já ocupa mais da metade de sua vida. Ela se mostrou ao mundo aos 7 anos na edição da Norske Talenter 2014. Desde a sua primeira apresentação, todos ficaram embasbacados – juízes e público – devido a grandiosidade de sua voz especial em corpo pequeno. Sentenciaram: tratava-se de uma “old soul“, tanto pela maturidade vocal quanto pela escolha de repertório – standarts de jazz.

Em seu canal do Youtube, em que faz covers de várias canções, as interpretações de Angelina vem a demonstrar, ano a ano, seu crescimento musical. Tudo assombra nesse ser tão jovem – a talentosa utilização de melismas, vibratos e gradações tonais, variações de voz de cabeça e de peito, além de seu exímio controle vocal, alicerçado pelo desenvolvimento de seu timbre único, profundo. Além das peças jazzísticas tradicionais – Billie Holiday, Dinah Whashington, Nina Simone, Frank Sinatra, James Brown, sua preferência desde o início – começaram a ganhar espaço interpretações de canções pops mais atuais, de Lana Del Rey, Whitney Houston, Amy Winehouse, Rihanna, John Legend a Adele, entre outros. O toque refinado no tratamento de suas versões trouxe frescor e maior sofisticação a elas. A única vez que nos foi dado ver perda de controle total sobre sua emissão vocal foi na homenagem a seu avô, com “You Were Always On My Mind”, bem no finalzinho da canção. Só os pouco sensíveis deixariam de se emocionar.

A menina Angelina Jordan Astar, aquinhoada de uma personalidade grandiosa de artista-referência, tal como foi Michael Jackson, chegou para ficar no panteão das grandes cantoras. Evidentemente, a não ser que mude tremendamente de estilo, ela não alcançará a penetração popular do Rei do Pop. Mas quem puder acompanhá-la no lançamento de suas incríveis interpretações, viverá o prazer sempre renovado na apreciação de uma música popular de qualidade. Entre as minhas buscas de suas interpretações, encontrei no Youtube a seleção feita no final de outubro de 2018 por Martin Cropper (https://www.youtube.com/watch?v=WhmLra5lAlk), ainda que seja de um e meio antes, mostra um pouco de sua trajetória. Algumas de suas faixas estão entre as melhores versões já feitas.

No início de janeiro, para a minha grata surpresa, Angelina se apresentou na edição 2020 do America’s Got Talent – Champions. Assim que entrou no palco, simpática e desenvolta, fiquei apreensivo por ela se apresentar diante de um público normalmente estimulado por pirotecnias vocais mais simples e efetivas. Respondeu às perguntas dos juízes com simplicidade, elogiou Simon Cowell – uma lenda, segundo ela – e foi se posicionar para a sua apresentação. Fiquei impressionado com a sua altura. Mesmo descalça, ombreava com os técnicos que ocupavam o palco na mise-en-scène improvisada-ensaiada na preparação do espaço. Minha expectativa era de que interpretasse um dos clássicos do jazz que a catapultaram ao mundo artístico.

À emissão das primeiras notas de Bohemian Rapsody, do Queen, percebeu-se que não ouviríamos algo comum. A nova versão de um dos maiores hits de todos os tempos iniciou-se por versos da metade da terceira estrofe. Angelina sopra-sussurra as palavras, a causar o efeito do ar a circular pelos ouvidos dos presentes:

“Anyway the wind blows
Doesn’t really matter to me
To me…”

Ainda a nos acostumar com a estranheza estilística inicial, em vez do tradicional piano da gravação original, um plangente violão nos encaminha para os próximos e cortantes versos, entoados com a voz “jogada para trás” de Angelina, ao contrário da voz aberta, bela e límpida de Fred Mercury:

“Too late, my time has come
Sends shivers down my spine
Body’s aching all the time
Goodbye everybody, I’ve got to go
Gotta leave you all behind
And face the trut”

Neste momento, Angelina sobe o tom para alcançar a dimensão do desespero:

Mama, oh!
I don’t want to die
But sometimes wish
I’d never been born at al”…

Em seguida, volta à calma aparente de quem está conformado com o crime que sabemos que cometeu, pela versão original, cantando apenas a parte final dos versos que mostravam a luta interna da alma da personagem, atormentada por visões dantescas:

“Oh baby, can’t do this to me baby
Just gotta get out
Just gotta get right outta here”

O encerramento se dá com os mesmos versos originais. Angelina entoa lindamente a segunda linha da estrofe, trazendo extrema leveza à certeza de que nada realmente importa, afinal:

“Nothing really matters
Anyone can see
Nothing really matters
Nothing really matters to me”…

Os cortes realizados na letra original, necessários para fazer a longa Bohemian Rapsody caber no formato da apresentação para o programa – um minuto e meio – em vez de prejudicá-la, acabou por expor a dor excruciante da personagem que decidiu se matar. Os versos escolhidos para a versão de Angelina acabou por me convencer que o homem a quem matou foi ele mesmo, ao contrário do que eu supunha até então pela quarta estrofe: “Mama, just killed a man / Put a gun against his head / Pulled my trigger, now he’s dead / Mama, life had just begun / But now I’ve gone and thrown it all away” – trecho ausente na canção de Angelina.

Ao final da apresentação, o público – que acompanhou sua apresentação entre “uaus”, silêncios e luzes de celulares acionados – aplaudiu de pé e ovacionou a menina-cantora-maior. Os quatro analistas teceram elogios rasgados, incluindo o temido Simon Cowell. Apenas faço o reparo ao que ele disse quando sinalizou que a versão de Angelina tinha a marca da “simplicidade”. Atrás do que parece simples, de fato se esconde um trabalho meticuloso na escolha do que cantar e como cantar, dando valor de obra-prima a uma versão de Bohemian Rapsody que ganhará outros intérpretes. Heidi Klum a elegeu para o Golden Buzzer, dando direito de ir direto para a Final do concurso/reality show.

Para quem não a conhecia, surgia uma nova estrela no firmamento. Para quem a acompanha desde os 7 anos, como eu, fã de programas de calouros do mundo todo, além de vídeos musicais desde garoto, era a confirmação de um talento especial. Que ao conhecer o que é tradicional tem maiores condições de inovar. Que a exposição que venha a sofrer com a continuação do programa, de grande audiência nos Estados Unidos e visto no planeta todo, seja encarada com a devida maturidade e a simplicidade que tem a caracterizado.

Apresentação de Angelina Jordan no America’s Got Talent – Champions 2020:

https://www.youtube.com/watch?v=VPuAl7ux7VY

https://www.youtube.com/watch?v=rn6nkX0h6Xw

Canal no Youtube:

https://www.youtube.com/channel/UC1Pwa4nFvIPbtYVLcBGDpjA

A Vida-Morte

VIDA-MORTE
Izadora, André, Amanda, Marllonn e Rosa Flor, jovens que desapareceram numa viagem do Espírito Santo à Bahia.

Sempre pensei na vida e, por conseguinte, na morte. Ainda jovenzinho, quando deveria nada fazer a não ser a me preocupar com a próxima brincadeira, a morte de meu tio José aos meus cinco anos, me impressionou o suficiente para começar a refletir sobre aquele fenômeno. O cortejo de pessoas tristes que cercaram o seu caixão, o choro compulsivo da minha mãe que mantinha algumas diferenças com o marido da sua irmã, os abraços respeitosos daqueles que afluíram a casa dele, como era costume à época, emolduraram para sempre o significado do que era morrer para mim. Desde então, me deparei com a perplexidade diante desse fato inconteste de nossa existência – morremos.

A questão da perenidade e a vontade de viver para sempre foram pouco a pouco, no decorrer da minha vida, transmutando-se em desejo de entender a morte pessoal e coletiva. Compreendi que morrerei fisicamente daqui a pouco, mas também descobri que a espécie humana, que é um fenômeno recente na Terra, considerando-se que o nosso planeta tem bilhões de anos e este veículo espacial em que viajamos um dia será abalroado pela explosão da estrela que lhe trouxe à luz, perecerá junto com ele, a não ser que consiga alcançar outros lugares.

O passamento da minha mãe foi um capítulo importante no desenvolvimento da minha compreensão da morte, ou segundo prefiro acreditar, da mudança de estado vital ou dimensional. Sou um livre-pensador e procuro não excluir nenhuma visão filosófica e/ou religiosa em relação à vida-morte. Isto me dá a liberdade de me perfilar lado a lado a miríades de posições em relação ao tema, formando um conjunto de idéias que me levaria ao fogo alguns séculos antes. A minha “intuição” a respeito disso ganhou maior  expressividade quando, no momento de maior angústia, sonhei com a Dona Madalena, linda e calma, me dizendo para eu ficar tranquilo, completando com um sorriso ao final – “Estou em paz!”… Se essa foi uma manifestação de ordem psicológica ou de outra natureza, o fato concreto foi o efeito que aquela “conversa” teve sobre mim, me deixando, também, em paz.

No noticiário de hoje vimos a informação da morte trágica de cinco jovens na Br-101*, que liga o Espírito Santo à Bahia, onde iriam comemorar o aniversário da mãe de um deles, que está tendo ampla repercussão pelas circunstâncias que envolveram o episódio – a idade e a beleza dos jovens, o desaparecimento inicial, as hipóteses que surgiram (todas baseadas na maldade humana), as informações desencontradas e, finalmente, o encontro dos corpos, vitimados por um violento, mas prosaico, acidente naquela estrada perigosa. Na mesma área, ontem, ocorreu outro acidente que vitimou outras quatro pessoas cujas mortes passarão relativamente anônimas, a não ser pelas pessoas próximas a elas, em relação aos cinco viajantes vindos de São Mateus.

O resgaste dos corpos foi acompanhado de perto, bem como será a desventura dos parentes no ato de reconhecimento, do velório e do sepultamento. Mortes, discretas ou espetaculares, sucedem-se aos borbotões e o planeta superpopuloso acaba por predispor cada vez mais notícias de desenlaces coletivos, se bem que os individuais estranhamente podem vir a se sobrepor algumas vezes aos maiores, mas anônimos.

Hoje de manhã, o meu ônibus parou em um semáforo pouco antes de eu descer. Pela janela da porta em frente a qual me posicionava, vi uma mariposa quase da cor do asfalto, nele se debater. Já não tinha forças para alçar voo e certamente dali a alguns instantes as suas tênues fibras repousariam amalgamadas junto ao piso pela força da borracha de algum pneu de carro. O coletivo partiu carregando as pessoas aos seus compromissos, locais de trabalhos e eu a minha faculdade, antes que eu pudesse observar mais este cessar de ânimo a provar a precariedade da vida.

*25 de Abril de 2012

Quando Roberto Carlos Cantou Contra o Sistema

Em 1967, em plena Ditadura Militar, um ano antes dela apresentar as piores facetas de um regime de exceção, com a instauração do AI-5, que viria suprimir direitos e aprofundar a repressão, aconteceu o III Festival da Música Brasileira, veiculado pela TV Record. Roberto Carlos, então cantor e compositor de grande penetração popular, graças ao Movimento da Jovem Guarda, decidiu participar com uma composição de Luiz Carlos Paraná.

Paraná era autodidata no violão e foi lavrador até os 19 anos no interior de São Paulo. No Rio de Janeiro, chegou a dividir quarto de pensão com João Gilberto. Além de compositor, ficou famoso como proprietário do Jogral, bar que movimentou a noite paulistana da época e gerou a gravadora Jogral, embrião da “Discos Marcus Pereira”, outro marco no meio musical. Era a segunda participação de Luiz Carlos Paraná em um festival. “De paz e amor”, parceria dele com Adauto Santos, ficou em segundo lugar no ano de 1966, interpretada por Elza Soares.

Roberto, apesar de sua origem “espúria”, decidiu enfrentar as possíveis críticas da plateia-base dos festivais, formada por estudantes de perfil intelectualizado, com viés ideológico de vários matizes. Aquela era a arena onde expressavam suas ideias e preceitos.  “Maria, Carnaval E Cinzas” era um samba belo e triste, que versava sobre a mortalidade infantil, tão comum entre a população carente da época. Como filho de agricultores, Paraná vivera de perto a realidade comum onde grassava a pobreza, tal qual no morro que Maria nascera. O indecente é que, depois de meio século, os índices ainda sejam altos em várias regiões do País. 

Em um festival onde compareceu “Ponteio”, de Edu Lobo e Capinam; “Domingo No Parque”, de Gilberto Gil; “Roda Viva”, de Chico Buarque e “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, a quinta colocação obtida pela canção interpretada por Roberto Carlos, foi um grande feito. Mais adiante no tempo, Roberto voltaria a mostrar seu posicionamento em relação à Ditadura de forma igualmente velada, ao lançar “Debaixo Do Caracol Dos Seus Cabelos”, em 1971. Nessa canção, em letra pungente, ele homenageia Caetano Veloso, então exilado em Londres, que “deixa sangrar no peito uma saudade e um sonho” de “voltar prá sua gente”.

Abaixo, a letra da música e o vídeo de sua apresentação no III Festival da Música Brasileira. Entre vaias e aplausos, Roberto Carlos enfrenta-canta com serenidade e afinação, o ruidoso público. Climático ao extremo, esse foi o festival onde Sérgio Ricardo, ao interpretar “Beto, Bom de Bola”, contrariado com a reação dos expectadores, quebrou o violão e jogou o instrumento ao público. O resto é História…

Maria, Carnaval e Cinzas

Nasceu Maria, quando a folia
Perdia a noite, ganhava o dia
Foi fantasia, seu enxoval
Nasceu Maria, no carnaval
E não lhe chamaram, assim como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Seria Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de amor

Não era noite, não era dia
Só madrugada, só fantasia
Só morro e samba, viva Maria
Quem sabe a sorte lhe sorriria?

E um dia viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
E em plena folia decerto estaria
Nos olhos e sonhos de mil foliões

Morreu Maria, quando a folia
Na quarta-feira, também morria
E foi de cinzas, seu enxoval
Viveu apenas um carnaval

Que fosse chamada então como tantas
Marias de santas, Marias de flor
Em vez de Maria, Maria somente
Maria semente de samba e de dor

Não era noite, não era dia
Somente restos de fantasia
Somente cinzas, pobre Maria
Jamais a vida lhe sorriria

E nunca viria de porta-estandarte
Sambando com arte, puxando cordões
E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

E não estaria em plena folia
Nos olhos e sonhos de seus foliões

Maria, Maria, Maria

Tereza Da Praia – Uma Libertária

Tereza

Eu era novo ainda quando ouvi “Tereza da Praia” pela primeira vez. O gosto do garoto da Periferia diferia da média dos meus vizinhos, assim como dos todos os outros, à época. Eu apreciava naturalmente a música brasileira mais antiga. Tinha à minha disposição uma discoteca incompatível para alguém de padrão empobrecido, herdado de minha vó paterna. Ouvia os acetatos de 48 rotações de Maísa a Mário Zan. A minha conexão com os temas de pelo menos vinte anos antes, cantados e ouvidos quase em sequência obsessiva, era de alguém que se identificava como se fossem atuais. O que não impediu de receber com entusiasmo a chegada dos novos Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Tom Zé, Jards Macalé que, ao mesmo tempo que homenageavam os artistas tradicionais, traziam novos ares, que alguém acabou por cunhar de MPB – Música Popular Brasileira.

As canções apresentavam uma durabilidade quase irrestrita. Eram executadas por anos em programas de rádio que, sem preconceito, divulgavam o panorama musical de todas as origens e estilos: francês, português, espanhol, italiano, alemão, latino-americano – tangos, boleros, mambos, rumbas – além da hegemonia dos de língua inglesa. Os Beatles eram um capítulo à parte – um amor cego. Quando se separaram, sofri como se fosse morte em família, que a paixão por Elis substituiu gradativamente. Em meu leque de preferências incluía Elton John, David Bowie, Michael Jackson, entre outros – para acompanhar os sempre cativos Frank Sinatra, Nat King Cole, Ray Charles e Elvis Presley. Hoje, mortos quase todos, tornaram-se eternos.

Mas, voltando ao tema desta crônica, “Tereza da Praia”, com letra de Billy Blanco e música do magnífico Tom Jobim, foi composta em 1954 na formação da Bossa Nova, que eclodiria com força total no final dos Anos 50, com João Gilberto e a divina Elizeth Cardoso – “um banquinho e um violão”, voz pequena, melodias ricas com características jazzísticas e temas que versavam, desde sambas de uma nota só a vozes desafinadas. Para o menino criado na cultura machista desde cedo, estranhei a liberdade com que os dois homens se referiam ao objeto de afeição ao qual ambos concordavam em dividir.

Parecia natural a mim que realçassem o “corpo bonito”, a “pele morena”, o “nariz levantado”, “os olhos verdinhos”, o “cabelo castanho, uma pinta do lado” – características físicas externas atraentes desde sempre para qualquer homem, inclusive para este imberbe sem experiência no contato feminino, a não ser em sonhos e figuras imagéticas da TV e Cinema. Minha profundidade rasa impedia que vislumbrasse algo mais por baixo dos sorrisos bonitos e trejeitos sedutores. Aliás, são poucos os homens que ultrapassam o superficial, mesmo depois de adultos. A atitude liberal dos contendores pela atenção da amada Tereza era algo totalmente inédito na cultura machista do brasileiro.

“É a minha Tereza da praia
Se é tua, é minha também
O verão passou todo comigo
O inverno pergunta com quem…”

Os namorados concluem que a namorada não deveria “pertencer” nem a um, nem a outro. Decidem deixá-la “aos beijos do Sol e abraços do Mar”, que “Tereza é da praia, não é de ninguém”. Uma figura livre e independente. A canção de 65 anos antes, foi regravada recentemente por Roberto Carlos – outra grande influência minha – e Caetano Veloso, de forma mais leve e casual. O lançamento original fez grande sucesso e trazia alguns detalhes que apimentavam sua composição: havia certa rivalidade entre Dick Farney, maravilhoso pianista e cantor e Lúcio Alves, de voz de veludo, dos quais era fã; o nome Tereza era o mesmo da esposa de Tom Jobim, referência que pareceu uma homenagem ousada. Além dela, especulava-se quem poderia ser Tereza, entre as muitas frequentadoras das praias do Leblon, onde se passava a história. Mais tarde, Billy Blanco chegou a fazer outra canção com o mesmo nome, mas segundo relatou, não se tratava dessa mesma, adindo que aquela não fora baseada em ninguém, especialmente.

Contudo especial Tereza se tornava ao representar uma mulher irreprimível, que apenas por seu desejo ficaria com alguém. Não se compromissava em destinar sua atenção somente para um dono-destinatário. Quem quisesse “tê-la”, que se conformasse com parte do tempo apenas. Anunciava a mulher libertária – ainda que se unisse oficialmente a um homem – isso não daria a ele a chancela de transformá-la em objeto de pertencimento, física e mentalmente, a não ser que quisesse. Seria o prenúncio de um mundo novo, novas diretivas, uma nova tendência, se atualmente não víssemos o tempo retroceder para muito antes de nascermos.

https://youtu.be/gC-7RAAOQbI