Esta missiva cumpre a função de ser um capítulo do meu Diário. Como passamos da meia-noite, tecnicamente, iniciamos um novo dia, mas psicologicamente, esta missiva pertence a ontem. Ou anteontem, quando a encontrei. Mas como você sabe, sou um “dono de casa” e as tarefas caseiras são tão simples quanto extensas. São como um videogame em que, ao se passar de fase, logo se apresenta outra, em que os movimentos repetitivos e bem executados resultam em satisfação apenas momentâneas. Meus bônus eu recebo a cada passada de vassoura pela casa ou quintal, a cada peça de “louça” ou panela que eu lavo, pois são “jogadas” que ocupam as minhas mãos, mas liberam a minha mente para passear pelos temas do dia.
Ontem, me ocupei de nossa reunião no Fellini. Esse nome… Eu sempre amei Federico… “Io me recordo” a Amarcord… Durante muito tempo, eu me encontrei no garoto de Rimini. Aquele pedaço da Itália que ele viveu-sonhou, tão longe da minha Periferia, durante muito tempo, foi o meu lugar. Quantas vezes não fugi para lá, quando a realidade daqui me alcançava com a sua dureza distraída? Encontrá-la, italiana e cidadã do mundo, paulistana de “cuore”, no Fellini, é como se eu fosse mais um ator dentro de um filme do mestre a ser apresentado logo ali, em uma das salas do Espaço…
Sei que a minha crença de que nada seja por acaso possa até irritá-la. O fato de “sabê-la” como mais uma pessoa a qual estava destinado a encontrar já me faz imaginar, com certa diversão, a sua expressão de desdém, a pensar que não tem nada a ver com o que acredito. Que deve apenas se responsabilizar pelo meu progresso como escritor… Gosto de pensar que eu possa ser uma pessoa interessante para aquém do escritor. Um amigo que aceita que invada a minha vida com toda a sua força e fragilidade.
A busca da palavra perfeita, ainda que não tenha sido escrita por si, me comove. O Verbo, criador e criativo, faz parte de sua essência vital. A direção que nos conduz a todos da Scenarium é, ao mesmo tempo, um sonho e um fato da vida. Que eu faça parte do roteiro de sua arquitetura, me faz acreditar que essa seja a nova realidade que devo viver. Sou fá desse “neorrealismo”. E sei o quanto isso tem de alegoria, como a que Fellini soube tão belamente construir. Ao conviver consigo, sinto que volto a viver em Rimini… Agora, na São Paulo que nasci. É como me reencontrar onde sempre vivi…
*Texto escrito um dia ou dois depois de 11 de Julho de 2017, por ocasião do lançamento do Coletivo da Scenarium, no Cine Café Fellini.
Eles se conheceram no Segundo Grau. Ela, esguia e alta, praticava esportes. Chamava a atenção por seus olhos claros. Ele, rechonchudo e cabeludo, usava óculos. Preferia se dedicar aos estudos e era bom em Português.
Calhou dela precisar de um reforço na conjugação dos verbos, na identificação das sílabas tônicas e dos complementos nominais e dele ser um cara bonachão que gostava de ajudar… Desde então, a dupla inseparável se formou. Nos três anos que estiveram juntos, compartilharam vários interesses e desenvolveram uma sólida amizade permeada de estudos, festas e confidências.
Ela lhe falava dos colegas com os quais ficava e do assédio constante que sofria. Quase maldizia ser tão bonita, enquanto que ele… sabia ouvir… Não era incomum dele enxugar as lágrimas da moça com a mesma manga de camisa que enxugava as suas, bem mais tarde, na calada da noite.
Apesar de estarem sempre juntos, nunca passou pela cabeça de ninguém que os dois pudessem ter um envolvimento romântico. Igualmente não passava pela cabeça dele que ela o quisesse como namorado. Isso o deixava confortável diante dela, ainda que tivesse se apaixonado desde que a vira pela primeira vez. À vista de todos, era um casal improvável, formado pela garota mais popular e o nerd esquisito.
As coisas começaram a ficar estranhas nos últimos seis meses da relação. Frequentemente, ficavam encabulados ao se olharem longamente um para o outro, a se perderem. Entravam em um mundo onde o jogo de aparências não exercia uma força tão poderosa quanto no que viviam – de amigas maldosas e colegas ressentidos-debochados. Nesses momentos de solidão compartilhada, conseguiam escapar ao doloroso-venenoso efeito dos pequenos grupos sociais.
Logo após a formatura, os pais da moça decidiram se mudar para outro Estado, onde buscariam maior tranquilidade e novas oportunidades de trabalho. Esse fato acabou por afastar os dois apenas fisicamente. Nos três anos seguintes, apesar de não se verem, passaram a se corresponder por cartas manuscritas. Ele sempre fora avesso às redes sociais e ela, depois que mudou, decidiu também abolir essa ferramenta de comunicação. Aparentemente, as cartas, que inicialmente serviriam somente como exercícios para a melhoria no uso da Língua, de uma forma incrível, fez crescer a integração entre os dois.
Depois de dois anos, ela começou a insistir para que ele a visitasse e conhecesse as paisagens pelas quais se apaixonara, onde agora vivia. Ele objetava. Dizia estar envolvido em um projeto pessoal importante, para além dos estudos na faculdade de filosofia e letras, que não poderia revelar na ocasião. Ao mesmo tempo, ela dizia que também tinha novidades a lhe revelar, mas que faria apenas pessoalmente. Apesar da crescente expectativa, somente após mais um ano, finalmente se reencontrariam, nas férias de verão.
No dia da viagem, o rapaz mal conseguia permanecer sentado em sua poltrona no avião. Ela, em terra, desde a manhã, chorou algumas vezes. No horário programado, se deslocou ao aeroporto com o coração a pulsar fortemente. Ela sabia que a decisão que tomou poderia impactar na relação. À espera de seu amigo, ficou impaciente ao ver que quase todos haviam passado e não o localizara… Até que um rapaz parado já há alguns minutos se aproximou dela e a chamou pelo nome. Ao prestar maior atenção, custou a crer que ali estava quem esperava. Diante de si, estava um jovem forte e bem apessoado. Sem os habituais óculos, os seus olhos ficaram maiores e se sentiu quase ser engolida por eles.
Quase ao mesmo tempo, disseram: “Você mudou!”… – Depois de um momento, ecoaram: “Mudei por você!”… Ele, com muito sacrifício, havia feito dieta, começou a desenvolver um programa de atividade física e aprumou a aparência. Ela, aproveitando o afastamento de seus conhecidos diretos, decidiu relaxar e deixar de ser tão obsessiva no controle alimentar. Engordou para ficar com a aparência semelhante a dele. Apesar da correspondência constante, nunca mencionaram se gostavam um do outro apesar ou por causa das características físicas que carregavam…
Passado o instante do primeiro impacto visual, ao se aproximarem, olharam dentro dos olhos um do outro, como faziam no passado. Imediatamente, se reconheceram em si mesmos, tocaram os lábios delicadamente como nunca fizeram e, abraçados, saíram rumo ao mundo novo do amor que se descortinava, para além das aparências…
Eu gostava de desenhar desde pequeno. Tinha habilidade razoável em passar para o papel imagens que via em gravuras, livros e gibis. Estes últimos me atraíam bastante. Adorava ver as revistas do meu primo aos quatro ou cinco anos e criava histórias de acordo com a sequência dos quadrinhos. Os desenhos da TV me ajudavam a verbalizar a fala de cada personagem.
Em determinado momento, entre cinco e seis anos, comecei a desenhar letras, fascinado por aqueles símbolos estranhos que representavam saberes interditados para mim. Fui estimulado pelas tarefas da escolinha infantil da esquina da rua onde morava, na Penha. Como modelos de meus desenhos, utilizei latas de manteiga que meu pai usava como repositórios de pregos, parafusos, arruelas, tachinhas e outras peças, com as quais fazia seus reparos.
Para agradar à minha professorinha, transcrevi-desenhei as palavras para o caderno de brochura onde ensaiava as primeiras letras de forma. Como não tinha noção de separação ou parada, as palavras seguiram como num trem cargueiro, umas grudadas nas outras, do início de uma página até virem “descarrilhar” no final da seguinte. Eu me lembro de ter feito umas duas ou três “trilhas”. Quando mostrei à mestra da “Rainha da Paz”, arranquei lágrimas inesperadas e ganhei um beijo no rosto. Melhor recompensa não haveria.
Como meu aniversário é em outubro e a lei estipulava que apenas com sete anos poderia entrar no curso regular, a minha vontade de começar a escrever e a ler efetivamente foi adiada, o que não impediu que começasse a interpretar as palavras, ainda que precariamente. No início dos seis anos, no entanto, passamos uma temporada no norte da Argentina, acompanhando o meu pai que permaneceu na casa da minha avó por quase um ano. Provavelmente, fugindo da perseguição política em época de AI-5, imposto pelo Regime Militar. Tive que aprender a falar outra língua, apesar de parente do português. Vivíamos em condições precárias e estímulos parcos. Não me lembro sequer de um livro ou revista que tenha visto naquele período.
Quando voltei ao Brasil, aos sete, fui matriculado no Primário e tive contato com o Caminho Suave das palavras. Apesar de falar mais espanhol que português, em pouco tempo li todas as histórias do meu primeiro livro e comecei a querer mais. Minha mãe, percebendo esse pendor, começou a comprar gibis, então os artigos “literários” mais baratos disponíveis. Porém, também gostava de histórias mais complexas, sem figuras. Minha imaginação era sempre mais fantástica que qualquer coisa que visse. Na segunda série, fiz o curso em duas escolas diferentes, com livros diversos. Em um mês, devorei o do segundo semestre e, na prova de leitura, ganhei visto de “Excelente” em linda letra cursiva da professora. Desejei escrever daquela maneira.
Na Canuto do Val, havia uma biblioteca. Conheci Monteiro Lobato, Júlio Verne e outros, além de livros sobre fatos extraordinários da História. Esses e os de Ciências passaram a ser do meu mais íntimo interesse. Foi uma época de intensa leitura e aprendizado acelerado – lançamento definitivo na minha aventura como leitor.
Um pouco mais adiante no tempo, comecei a escrever pequenos contos e a fazer versinhos para namoradas imaginárias. “Hey, Jude” ganhou uma versão adocicada que não mostrava para ninguém. As minhas historinhas tinham o meu irmão menor como ouvinte cativo e pude perceber desde cedo o quanto a Palavra é encantadora. Desde então, sou encantado pelo poder do Verbo…
Em um acidente tão prosaico quanto difícil de explicar, prendi os dedos da minha mão esquerda na porta, exceto o polegar. Como o meu próprio corpo a impedisse de ser aberta, pois eu estava sendo pressionado contra uma estrutura, fiquei quase um minuto a sentir a pressão de oitenta quilos sobre as quatro falanges até que fossem liberadas. Felizmente, não quebrei nenhuma delas, mas perdi a sensibilidade na ponta do dedo anular. Espero que momentaneamente. Nada tão sério quanto a falta da mão esquerda de um companheiro de mergulho com o qual conversei à respeito da dor fantasma quando ganhei a sua admiração pela destreza em pegar jacaré nas ondas da praia onde estava.
Apesar de insensível ao toque mais delicado, essa ponta de dedo sente frio e calor. Não está roxa, sinal que apresenta circulação. Simplesmente, parece um território estrangeiro a ocupar um pedaço do outro – Base de Guantánamo em Cuba. O anular esquerdo não tem deixado de me ajudar nas tarefas. Agora mesmo, estou a utilizá-lo para escrever no computador, porém isso me fez pensar sobre como sistema sensorial desempenha a intermediação entre o nosso corpo e o mundo exterior.
Os sentidos oficialmente reconhecidos são cinco, alguns mais ou menos utilizados, a depender de cada um. Os olhos são os que mais se destacam na compreensão da realidade pela maior parte de nós. No entanto, pessoalmente acredito que a visão seja o mais enganador dos sensores para revelá-la. Por exemplo, o olhar pode vir a gerar uma paixão, mas será o tato a estabelecer a verdadeira interação entre os corpos dos apaixonados. Como se apregoa por aí, se não “rolar química”, não prosperará. O tato, em quem não enxerga, é outra forma de ver.
O que vemos nos comove de imediato, porém, será o cérebro a interpretar o que enxerga. O cérebro educado em uma determinada cultura, ideologia ou religião, transformará a visão de um corpo nu, por exemplo, em objeto de culto ou perversão, de poder ou queda, subjugação ou liberdade. Afora a avaliação de possíveis qualidades físicas padronizadas de fora para dentro. Os corpos fragmentados de Picasso causam fruição artística, as deformações físicas reais podem vir a causar repulsa ou compaixão. O ideal é que nos libertemos da visão como meio de revelação do sentido da vida.
Quando ao olfato, descobri a sua dimensão quando, em certa ocasião, estava passando por algum processo infeccioso, talvez no fígado. Fiquei com esse sentido bastante estimulado. Percebi como os cães e outros animais, além dos deficientes visuais, são eficientes em “enxergar” o que não veem. Ao dobrar uma esquina sabia que encontraria o vendedor de abacaxi logo adiante. Tinha consciência do momento exato em que minha mãe fazia café, em outra casa do lado da minha, separada por dezenas de metros, paredes e compartimentos. Após ter o meu problema solucionado, perdi esse superpoder, mas não me esqueço até hoje como era impressionante enxergar pelo nariz.
Os odores exercem um forte estímulo apreciado ou não, a depender de sua origem e força. Cada vez mais tentamos reproduzir cheiros naturais para simulá-los ou substituí-los. Até simulacros de feromônios, que no passado nos auxiliavam no processo reprodutivo, hoje é utilizado para ajudar na atração sexual. A sexualidade, cada vez mais valorizada, tem sido encarada como expressão da individualidade entre os humanos. Não apenas o olfato, mas todos os outros sentidos são propagandeados como intermediadores para estimular o consumo em torno dessa força primeva.
Assim como é poderosa a atração que exerce o cheiro da comida. Quase associado ao olfato, o paladar é um sentido em torno do qual a cultura do alimento ganhou espetacular complexidade por se tornar um dado cultural humano, além de ser a maneira que primordialmente usamos para repor energia para o funcionamento do nosso organismo. Organizamos verdadeiros eventos e templos para consumirmos alimentos líquidos e sólidos. Certamente, vivemos e morremos pela boca.
A audição detém uma tremenda importância nas relações humanas e de outras espécies animais. O som se propaga no meio físico em frequências e ondas e apresenta outras tantas características, que talvez transformasse em artigo científico uma simples pincelada sobre os sentidos. Reconhecido como fonte emanante de poder desde sempre, o Som, na Bíblia é apresentado como o próprio Deus – “No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Não é à toa que muitos de nós, escritores, que lidamos com as palavras, carregamos certo complexo de grandeza por poder criar e destruir em seus textos.
Os Hindus acreditam que se conseguirmos nos conectar com o som primordial do Universo – OM ou AUM– alcançaremos sintonia com a frequência existencial sublime. De alguma forma, todos nós percebemos o quanto o som pode alterar o nosso humor. Isoladamente ou aliado ao verso – a Música – uma das criações artísticas mais importantes do Homem. A fala é a forma de comunicação mais direta e mais utilizada por nós. Porém, é comum ouvirmos apenas o que queremos e frequentemente interpretarmos de maneira discrepante o discurso da mesma fonte, ainda que seja na mesma língua.
Para terminar, faço alusão aos chamados sentidos extra-sensoriais, de acalorada discussão entre defensores e contrários. A ter como exclusiva a base científica experimental, do modo que a concebemos, eles são refutados. Contudo, ao longo da História humana são utilizados como justificativa para explicar razoavelmente certas apreensões da realidade, principalmente para uma grande parcela das pessoas. Eu, pessoalmente, acredito piamente no sexto sentido feminino. As mulheres costumam sentir-cheirar-ver-tocar-degustar de longe e previamente algumas situações…