#Blogvember / Apagão

“E mil orações aos céus para a vida apagar de uma vez”, por Flávia Côrtes, As Estações

ativistas golpistas interditam rodovia
impedem que um garoto faça cirurgia
que evitará que fique cego que fique disseram
um adolescente invade escola mata professores
duas alunas fere gravemente muitos
com arma de fogo símbolo de liberdade segundo estultos
jogador brasileiro se machuca gravemente comemoram
não é um bom sujeito o bom atleta festejemos
oram para magoar
clamam para que sofram os que lhe são diferentes
para os que passam fome estão ao relento são indiferentes
há um apagão de solidariedade entre iguais
são iguais em malquereres os que têm prazer na dor
invadem os ambientes insalubres das pessoas de bens
porque são seus e de mais ninguém
porque são eleitos têm méritos
são perfeitos com seus dentes implantados
bustos siliconados cílios alongados bocas infladas
de palavras mal faladas malfadadas mal que graça
feito rastilho de pólvora incêndio em mato seco
água tempestuosa em morro abaixo
arrastando casas gentes
se esmeram em tornar pior o que é sordidez
que se ergam mil orações aos céus
para a vida apagar de uma vez…

Foto por Engin Akyurt em Pexels.com

Participam: Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Suzana Martins / Mariana Gouveia

#Blogvember / Desmemoriado

“… as memórias ficam suspensas dentro de mim…”, por Mariana Gouveia, em As Estações

Eu me lembro de meus sonhos de infância, mas a própria vivência infância está envolta em nebulosidade. Várias das minhas lembranças entraram para a galeria de memórias em suspeição – sonhos ou vivências? Que não melhorou com a chegada da adolescência. São recorrentes os momentos em que evito encontrar colegas de escola por não me lembrar de seus nomes. É comum começarem a descrever situações que lembram como se tivessem acontecido ontem, enquanto eu mal me recordo de episódios recentes. Não que seja de todo desmemoriado. É que a minha atenção recai sobre assuntos e episódios totalmente aleatórios, muitas vezes sem importância ou conexão com circunstâncias importantes. Com isso, costumo chamar a minha memória de “randómica”.

Como consequência, acabo por me ver envolvido em discussões que tem os seus bons motivos: não me lembrar de coisas relevantes para as pessoas com as quais convivo – colegas, amigos, familiares – próximos ou não. É como se eu não desse a mínima para eles. E por mais que seja involuntário, não deixo de sofrer com isso. Essa dispersão-suspensão de fatos no tempo talvez tenha explicação – sintomas de TDA – que eu consideraria leve. Esse autodiagnóstico leva em conta que eu consiga me concentrar no trabalho e quando escrevo, ainda que os padrões não se assemelhem quando comparo essas atividades.

No trabalho, consigo planejar todas as etapas, horários e uso de equipamentos. Bem, vez ou outra, o nosso sistema de checagem e re-checagem falha. Na escrita, parto de ideias que surgem de repente ou de bases bem definidas, pré-estabelecidas. Apesar de, nas duas vertentes de produção, frequentemente me deixar viajar na construção do texto, busco demonstrar certa unicidade no estilo.

Essas duas funções – de prestador de serviços e escritor – são como ilhas no meio do oceano revolto ou um oásis no deserto. Consigo lhe dar com os problemas que surgem como se soubesse de causas e consequências. No trabalho, a norma tem sido o de resultados exitosos. Na escrita, tenho conseguido chegar aos finais em série com satisfação. Ainda assim, o sentimento é o de constante esforço no sentido de aprimorar os mecanismos de execução e a conquista de melhores textos.

Mas eis que após o término dos eventos, não fosse a gravação e a produção de fotos que venham a recordá-los, as várias etapas são dispensadas para o porão da memória, a não ser que tenha ocorrido alguma falha. Nesse caso, as uso como aprendizagem. Quanto aos textos, então, acho que nunca deixamos de reescrevê-los. Alguns “são” o que “são” ou ficam como ficam. Outros, “merecem” melhor sorte. Principalmente, depois que os relemos. A minha desmemória ajuda a torná-los muitas vezes “inéditos”. É comum me surpreender com histórias que sei que escrevi como se não as tivessem escrito.

Essa nuvem passageira que é a coleção de minhas recordações evanescentes, apresentam as suas dificuldades. Fico a imaginar se esses recortes de situações díspares não seja uma forma de defesa contra eventuais traumas. Na confecção de um de meus livros, cheguei a abrir portas emperradas de quartos fechados e não tive coragem de ir adiante. Quem sabe, um dia, eu consiga estar preparado para mergulhar em mim…

Foto por Ekaterina Astakhova em Pexels.com

Participam: Suzana Martins / Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso

#Blogvember / Cadeados Invisíveis

“Nenhuma das chaves que possuía podia decifrar os segredos dos [invisíveis] cadeados”, por Flávia Côrtes, em As Estações

o que queremos nem sempre é o que queremos
muitos são desejos que querem que o queiramos
outros são quereres emprestados de gerações mortas
estamos vivos desejando nos libertarmos de tantas demandas
são fôrmas externas que nos modelam desde tempos imemoriais
violência contra os nossos corações imaturos
vá por esse caminho de destino conhecido ficará a salvo
me salvará de que?
se quero experimentar o caminho tortuoso da indecisão e do inesperado?
estabilidade sensaboria insensibilidade
sem uma dor para chamar de minha?
perderá tempo oportunidades se perderão…
o tempo é meu
perdição é o que eu quero se não gosto do que espero
e o que esperam de mim…
há quem queira decifrar segredos de cadeados atados a ferrolhos pesados
quero o impossível decifrar códigos de grilhões inexpugnáveis
de invisíveis cadeados de querências sem fim
ir pelas manhãs de cidades fantasmas
adentrar por portas sem batentes seguir por portais para o outro lado de muitos mundos
invadir campos não explorados de fantasias
e não cercados de horizontes marcados
lusco-fusco de meu olhar atravessado e profano
quero chegar ao que não existe resiste quando
é o desejo de me aprofundar me aproximar do âmago quanto
do nada redentor e definitivo
estarei morto e feliz a sentir que não tenho fronteira
apenas num estado de nenhuma beira…

Foto por Alexander Krivitskiy em Pexels.com

Participam: Lunna Guedes / Suzana Martins / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso

#Blogvember / Os Espinhos

Foto de A Mulher Do Padre, um filme dirigido por Dino Risi, com Sophia Loren e Marcello Mastroianni, de 1970.

“A carta foi escrita com os espinhos que ninguém plantou”, por Mariana Gouveia (As Estações

Não pude evitar me apaixonar por aquela bela mulher – mãe zelosa, ativa batalhadora de causas humanas, trabalhadora incansável que não deixava de oferecer o melhor para seus dois filhos – apesar da falta do marido que a deixou sem explicação alguma. Até que as amigas descobrissem que ele fugira com uma delas, vindo a morar em outra cidade. A ex-melhor amiga de LucindaAlexandra – já mantinha um caso com Carlos Alberto há alguns anos. O que o afastou definitivamente de Lucinda foi por considerar a mãe de seus filhos autossuficiente demais. Em conversa com Alexandra soube dessas reclamações de Carlos Alberto. “Comigo, ele se sente o homem da casa, mesmo porque fico apenas à disposição dele”. De fato, com Lucinda o tipo se sentia diminuído por ela bancar grande parte das contas da residência.

Lucinda conseguiu se diplomar em Administração de Empresas a duras penas. Mesmo grávida dos dois filhos durante o tempo do curso, conseguiu completá-lo com mérito. Com o canudo na mão, pôs em pé um plano que reunia pequenos negócios da região onde vivia, tendo mulheres à frente. A cooperativa foi um sucesso. Na época da Pandemia, implantou as vendas Online que a mantiveram em expansão. Apesar do declínio da Economia de maneira geral, as Filhas de Lilith se tornaram referência de qualidade e penetração mercadológica. No entanto, Lucinda nunca saiu do bairro que crescera. Católica, de frequentar as missas todos os domingos, não deixava de tomar a Eucaristia e confessar… comigo.

Eu me lembro de tê-la advertido quando me falou do nome que daria ao projeto da Cooperativa que era derivado de uma versão judaica da criação da mulher junto com o homem, não dela da costela dele, como na versão bíblica conhecida. Aliás, suas raízes fincavam em chão bem mais antigo. Ela me olhou através da tela vasada do confessionário com aqueles olhos que me abduziam e o sorriso que me fazia sorrir, explicando: “eu gosto de muita coisa do Cristianismo. Mas a força do mito de Lilith é o que mais se aproxima do que eu penso sobre a nossa existência neste planeta. Mas os motivos que eu tenho de frequentar a Igreja tem a ver com outros, além do sentido do congraçamento”.

Ao terminar de falar, Lucinda atravessou a tênue barreira que nos separava com a força de seu olhar e soube, naquele momento que ela me amava como eu a ela. Conversei com o meu confessor que me aconselhou a pedir transferência e deixar a Paróquia. Escrevi uma carta para Lucinda, falando de tudo o que sentia e que aquele sentimento era um impedimento para que continuasse o meu ministério sacerdotal. Completei que a carta fora “escrita com espinhos que ninguém plantou”, a não ser o Destino. Após escrevê-la, passei a noite acordado e por mais que tentasse encontrar em minha fé os motivos para continuar o sacerdócio, os olhos de Lucinda me iluminavam os pensamentos.

Fui falar com ela no escritório d’As Filhas de Lilith, do lado de sua casa. Ela me recebeu com aquele sorriso abrasador. A minha intenção inicial era o de entregar a carta, dizendo que só a lesse quando eu não estivesse mais presente. Mas diante dela, achei que merecesse um diálogo mais franco, sendo Lucinda um exemplo de coragem. Quando comecei a falar, ela ficou com os olhos marejados, enquanto mordiscava a sua boca sedutora. Quando disse que estava apaixonado por ela, estendeu as suas mãos e tocou as minhas devagar e invasora até espalmá-las.

Padre… não, sem padre… Sérgio, eu também o amo! Sempre quis ser a mulher do padre! – rindo seu sorriso mais lindo.

Lucinda, sou casado com a Igreja e você, com o Carlos Alberto, apesar de ele estar com a Alexandra… e…

Ela me interrompeu. Disse que o Carlão, como o chamava, tinha vindo com um papo de pensão, já que a Cooperativa estava fazendo sucesso. Nós nos separamos e assinamos um acordo em que ele concordou em receber um salário-mínimo por mês.

É o pai dos meus filhos. Não poderia deixá-lo desamparado. Mas é jovem, pode muito bem trabalhar. Depois, eu me apaixonei por você desde que percebi seu entusiasmo pelos trabalhos devocionais. Meus filhos falam mais de você do que do pai. Eles o admiram e gostam de frequentar os cursos de música que a Paróquia dá junto com os profissionalizantes e alfabetização.

– E eu me apaixonei por você por sua entrega, coragem e alegria no auxílio às pessoas carentes.  Você é uma mulher maravilhosa, Lucinda! Eu queria…

– … me beijar?

Nesse instante, fui ao seu encontro atrás da mesa e a beijei… minha primeira vez entre todas as vezes que passei a beijá-la o mesmo beijo apaixonado. Perguntei:

– Quer ser mesmo a mulher do padre?

– Desde menina…

Participam: Lunna Guedes / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Suzana Martins

#Blogvember / A Alma E o Mundo

Passava Eu pelos recônditos de um dos Universos, quando fui sorteado pela Consciência Total para descer de minha condição de ser pleno para surgir encarnado no corpo de um Homem – uma das muitas vertentes de seres humanos espalhados por incontáveis planetas – uma forma em que o corpo tem um centro que articula sensações, emoções, sentimentos, ideias, a imaginação e os devidas condições para fazer avançar a abertura da Mente e a manipulação da Energia.

Sabia que aconteceria de ser chamado. Quando chegamos a sermos um com a Consciência Total, dissolvemos a nossa própria identidade, a perdendo para ganhar o Todo. Quando voltei a perceber o meu entorno, sentindo-me apartado Dele já era um prenúncio de minha descida. Como havia perdido a lembrança de meu percurso anterior nas muitas dimensões, como todos os que chegam ao estágio último-primeiro, seria uma aventura nova.

Acessei os arquivos da CT para entrar em contato com a História e o desenvolvimento humano daquele planeta tão pequeno quanto importante. Estavam, nas condições nas quais iria encarnar, ainda ligados à mandamentos que mais aprisionavam do que libertavam a Mente, de modo geral. Em lugares, aqui e ali, já existiam Avatares que haviam anunciado as possibilidades de escaparem às adversidades provocadas por desvios que o Egoísmo produzia. Mas o aprendizado era disperso e variável em repercussão. Crenças na se deslocavam para a matéria em vez de serem vivenciadas como vibração espiritual.

A minha encarnação na Terra – esse é o nome do planeta que seus habitantes lhe deram, apesar de ser composto a maior parte por água – foi bastante tumultuada. A mulher que me gerou, Maria, era uma pessoa corajosa, que enfrentou a possível acusação de traição de seu marido. Era, igualmente, compassiva. O que tornou tudo menos penoso. O meu pai terreno, José, me adotou ainda que pudesse passar por um homem enganado. Eu o amei profundamente. Era um pai exemplar. Entendeu o seu papel no concerto. José me ensinou o seu ofício e, quando eu o executava, entrava em transe. Eram momentos em que Eu conseguia voltar ao Nada. Descansar.

Sabia o que estava por vir, mas a Humanidade a cada ano que vivia absorvia a minha consciência. Entendi perfeitamente o quanto a mundo material era poderoso. Fui feliz pelos dezoito anos em que visitei lugares diferentes, perto de onde nasci. Voltei às terras de onde vieram os Reis Magos que me saudaram graças às estrelas que conseguiam ler. Tive contato com os saberes da Índia e conheci o lindo trabalho de Buda. Porém, o estado de coisas em Israel e Judá exigia outro tipo de abordagem. As centenas de anos antes de experiência em que a Alma ganhou preponderância foi engessada por leis em que o povo foi dividido em castas. A riqueza material era mal distribuída, criando choques entre os poderosos que utilizavam seus súditos e servos para conquistas que se perpetuam em ciclos enquanto houver os egos pessoais como diretores dos caminhos humanos.

Aos meus trinta anos terrenos, voltei para a região em que Eu (re)nasci. Vivi os altos e baixos de quem fala o que considera ser verdadeiro, mas que vai contra as regras vigentes. Fui amado e repudiado, inclusive por quem considerava amigos. Muito mais humano do que gostaria de me sentir, ouvi coisas que me angustiaram. Em uma ocasião, senti que “o mundo parou ali onde dói a alma e onde o silêncio é apenas aquele eco que invade os meus ouvidos surdos”.

E ainda hoje, ouço falarem em meu nome atrocidades que dividem os homens em categorias que buscam desvalorizá-los para ascender quem pronunciam versículos ditos sagrados. Alguns se auto intitulam mensageiros do Altíssimo, sem entender que não existe alto e baixo, longe e perto. Não voltarei para anunciar boas novas que são tão velhas quanto o Universo mais antigo. Não quero mais ser crucificado em uma Santa Cruz, lugar de tortura e sofrimento. Se sou Rei é do Amor. Não quero que chorem de novo – Maria e suas irmãs, minha amiga Maria Madalena e Verônica. Não quero ser perfurado por lanças, que me façam beber fel e me coloquem uma coroa de espinhos. Mas é isso que é feito todos os dias com seus habitantes por quem comanda as ações no “meu” planetinha querido. Em algum Tempo entre tantos tempos, espero que consigam suplantar os seus medos e egos…

Foto por Pixabay em Pexels.com

Participam: Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Suzana Martins / Lunna Guedes