Comunidade Canina*

Aqui em casa criou-se uma pequena comunidade feminina de cães, graças à doações forçadas, resgastes e nascimentos inesperados.

Dorô, a caminho do banho.

A Dorô nasceu da Lua – uma velha amiga que sequer sabíamos estar grávida até gerar um único filhote. Até hoje, nem sabemos como engravidou, sendo que nunca a vimos fora do quintal. Muito provavelmente, uma escapada noturna ocasionou o evento. Discreta, não desenvolveu barriga e deu à luz a esse ser que nos acompanha desde então, há alguns anos. Hoje em dia, se ressentindo pelo fato de ter outras companheiras no quintal, mantém-se normalmente arredia em seu canto.

Penélope, sempre disposta a brincar, apesar das dores articulares.

A Penélope veio pelas mãos do irmão da Tânia, Edu Joshua, que se mudou para um apartamento, um espaço muito pequeno para comportar um ser tão grande. A sua doçura ultrapassa todos os limites de volume e ela preenche a nossa casa de alegria e força, mesmo tendo desenvolvido dores articulares em uma das patas.

Domitila, de patinho feio a cisne.

A Domitila foi resgatada pela Romy na rua, toda ferida de sarna e tingida de tinta jogada por diversão (?) por algum ser incapaz de sentir compaixão, mas “articulado” o suficiente para perpetrar esse ato covarde. Foi pacientemente cuidada pela Romy e pelas outras meninas. De um “etezinho” que parecia, transformou-se em uma bela fêmea da espécie dos mamíferos canídeos. De tão esperta que sempre foi, em determinado momento, conseguiu escapulir de nossa atenta guarda e engravidou antes que a castrássemos. Doamos todos os filhotes, menos um que, feinho que só, foi preterida por todos.

Frida, querendo ficar no quentinho da sala…

Assim, a Frida ficou conosco. Na maior parte do tempo, mantém a cabeça baixa, o andar lento e o olhar arrevesado de quem sempre está sendo acusada de ter cometido algum crime. Quando algo a interessa, no entanto, como um petisco extra que oferecemos, é capaz de movimentos extraordinários e rápidos como ninguém. Tem o poder de se tele transportar, o que explicaria o fato de surgir em alguns lugares magicamente, do nada!

Como uma notícia que se espalhou pela comunidade canina, vez ou outra surgem novas candidatas a viver em nosso quintal. A penúltima, conseguiu um lar pelas mãos de nossa amiga Mariana Fortuna – a Huanna parece ter um alcançado um verdadeiro espaço de amor, se bem que retribua destruindo utensílios diversos – Mari, não aceitamos devolução!

Carmela Leleka, em pose de “sou adorável”!

Agora, nos chegou Carmela, resgatada pela Lívia e rebatizada pela Ingrid, de Leleka. Estamos a oferecendo à doação, mas alheia a nossa intenção de doá-la, ela já constrói alianças de amizade com as demais convivas da casa, alcançando sucesso, por enquanto, com duas delas – a Penélope – sempre ela! – e a Frida. Não duvido que, com mais tempo, ela conquiste a confraternização plena das outras duas, se bem que não gostaria que tivesse tanto tempo assim. Porém, caso continue conosco, será mais uma fêmea em minha vida, que aceitarei acessando todas as minhas reservas de amorosa paciência… Fazer o quê?

Carmela Leleka, construindo alianças com a mais poderosa da comunidade, Penélope.

*Texto de 2013

O Ledor

Ledo engano imaginar que ledor leia apenas a dor. Ledor lê o desengano, a alegria, a raiva, a tristeza, o amargor, a lida e o suor. Lê o amor e seu contrário o vazio. O ledor lê o crime, a bondade, o cenário, a incapacidade de estar, a vontade de ficar ou viajar. Lê a engenhosidade do escritor, sendo que a maior é não identificar, quando o lê, o engenho da criação. Quando sente cabalmente o seu efeito sobre si e se identifica com o que lê. Ao mesmo tempo, o escritor escreve também para si e fica contente quando percebe que se encanta com o seu próprio canto e o toma como se não fosse seu. Sente-se bem e angustiado. O escritor se pergunta conseguirei voltar a criar uma obra, um texto, um parágrafo, uma linha que me abandone e se torne autônoma de mim?

Apôs começar o ano como programei — lendo uns quinze títulos em dois meses — voltei à secura dos olhos. Não que não tenha lido muito. Seria insuportável para mim. Mas pegar um livro entre as mãos e seguir às páginas com gosto e periodicidade, deixou de ser uma prioridade, enquanto retomava a rotina inóspita do saariano tempo pandêmico. Escrever, escritor que me nomeio, igualmente se tornou penoso, porque criava mesmices e sensaborias. Aliás, criar já é algo pretencioso demais. Os escritores, os melhores de nós, creio alcançarem apenas jogar luz sobre os recônditos cantos de paredes da casa onde habitamos. O que já é um grande talento. Artistas fora de padrão conseguem transfigurar de forma aguda uma realidade que, de paralela, se impõe como existente.

Quando mais moço, lia frequentemente e não havia lugar que não fosse bom o suficiente para me entreter com os livros. Conseguia me apartar da conjuntura externa e me tornar invisível. Quando gostava do tema, mergulhava fundo nas palavras e me enxergava atuando com as personagens. Ainda que o livro não fosse tão interessante, a curiosidade era suficiente para me conduzir para longe de onde estava. O caminho que seguia pertencia a uma dimensão particular. Atualmente, tenho que buscar silêncio e condições mínimas de paz de espírito para que consiga ler. Gostaria imensamente de voltar a ser o mesmo de antes. E o relógio não para de tiquetaquear. O ledor está cada vez com menos tempo de vida terrena para degustar outras formas de vida pela leitura. Resta perguntar: na paz da morte teria como continuar a ler?  

Maratona literária Interative-se de maio
Isabelle Brum / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso / Lunna Guedes

BEDA / Nas Vitrines

Noite feita, encontrei manequins presos em uma vitrine. Eu os achei um pouco tristes, a espera de serem libertados… Ilusão! No máximo, caso isso ocorresse, buscariam ir para trás de outras vitrines. São profissionais. Atuam assim a tanto tempo que não sabem fazer mais nada. É o preço que se paga por serem eternamente jovens e belos, corpos irretocáveis, firmes e lisos. Não se importam sequer que não tenham cabeças, alguns… São bem pagos por isso. Em roupas da moda.

As vitrines são atraentes, luminosas. Muitos creem que sejam o melhor lugar do mundo para se morar. A tristeza que apresentam, de início é falsa. Faz parte do padrão. Junto a um certo ar blasé. Tudo para atrair a atenção. Assim como seria falsa a alegria que expressassem. Depois, como ficam permanentemente engessados num mesmo esgar, desconhecem seus reais sentimentos. Perderam a sensibilidade emocional. Porém, como recompensa, recebem muitas curtidas. Vivem e estão mortos por isso.

Adriana Aneli / Alê Helga / Claudia Leonardi / Darlene Regina
/ Mariana Gouveia / Lunna Guedes / Roseli Pedroso

Outros Carnavais*

Eu, com Romy, Verônica, Ingrid e Lívia – 1998

Entre os resgastes realizados por nós dos registros memoriais de imagens nos baús (caixas de sapatos) do passado, encontrei esta foto de 1998. A Ortega Luz & Som, nossa empresa familiar de locação e operação de equipamentos de sonorização e iluminação para eventos, participou de muitos bailes de Carnaval no Clube Guapira, do bairro de Jaçanã, juntamente com a Banda Nova Geração, quando o Carnaval de Salão ainda tinha alguma repercussão na cidade de São Paulo. Hoje, as melhores bandas da cidade são convidadas para realizar as suas apresentações no interior deste e de outros Estados, onde alcançam sucesso de público, tanto quanto acontecia naquela época por aqui.

Eram milhares de pessoas nas quatro noites e três matinês, estas últimas especialmente voltadas para as crianças. Sempre que havia oportunidade, as meninas da casa compareciam em pelo menos uma delas, o que parecia lhes trazer bastante alegria e, por elas, eu me alegrava. Por meu turno, já havia percebido que o Carnaval perdera o seu encanto de fantasia e poesia, ou talvez fosse eu que não alcançasse mais a minha criança dos tempos em que morava na Penha, perto da Vila Esperança, imortalizada em uma canção de Adoniran Barbosa, quando o Carnaval de Rua tinha uma enorme expressividade, colocando os assuntos mais prementes do ano sob a ótica da irreverência nos desfiles de pessoas comuns que, com imaginação e criatividade, nos mostravam a cara mais alegre do povo brasileiro. Adorava ver a aparente desordem em cortejo de roupas extravagantes e trejeitos exagerados dos componentes dos blocos, com as baterias tocando no compasso de meu coração acelerado. Esse período foi vivido na década de sessenta, quando houve a assunção dos militares ao poder e, mesmo assim, as críticas sociais persistiam e parece que os mandatários faziam vistas grossas para aquelas ousadias. Passadas três décadas, lá estava eu, reproduzido nos corpos de minhas filhas, Romy, Ingrid e Lívia, carregando o mesmo entusiasmo pueril, em confete e serpentina.

E porque falo sobre o Carnaval antes do Natal, tão mais próximo no calendário? Sempre cogitei que o Carnaval fosse muito mais autenticamente nosso que o Natal. Aliás, se fôssemos legítimos latinos, daríamos presentes no dia 6 de janeiro, Dia de Reis, como é tradição nos países colonizados pelos espanhóis e portugueses e não no mês de São Nicolau. Voltando à foto, nela estão as minhas três filhas, mais a do Humberto, Verônica, vestindo a indefectível vestimenta de odalisca ou algo parecido, o que deveria conferir o aspecto de viagem para outra realidade, que é o que o Carnaval parece representar para quem vive a fantasia de viver outra personagem. Estão lindas, estão felizes ou estão lindas porque estão felizes. Se bem que nem tão contente parecia estar a “Licota“, que nos seus dois anos e poucos meses de idade, devia estar mais assustada do que qualquer outra coisa.

Em uma viagem de quase vinte anos à frente, para 2015, o Carnaval ocorrerá no mesmo mês daquela festa de 1998, em fevereiro, como é tradição. O Brasil terá desse modo transcorrido um período de dezessete anos, em que se trocou a história viva pelo esquecimento e o povo, a inocência pela culpa, a esperança pela descrença, a identidade com o Carnaval por uma identidade carnavalesca. Simplesmente dizer “como nunca antes neste País” nunca pareceu tão falso, já que o presente é resultado de nossas ações do passado e o futuro se faz hoje…

*Texto de 2014

Panem Et Circenses

Represa de Guarapiranga

O meu irmão e eu, somos locadores de equipamentos de sonorização e iluminação para a realização de eventos. O nosso trabalho envolve certas circunstâncias especiais e uma delas é o de tentarmos agir o mais seriamente possível em uma atividade que dá embasamento para a celebração da alegria e a descontração… dos outros. Como sempre digo, trabalhamos onde os outros se divertem. Desde a política do “Panem et circenses”, ao tempo do Império Romano, que buscava distrair o povo para os problemas sociais de então com um expediente que, de alguma maneira, o deixava sua liberdade à mercê dos poderosos, percebe-se que celebrar é uma poderosa maneira de dar vazão à alegria por estarmos vivos, comemorar um diploma, uma conquista profissional ou social, o aniversário, lançamento de produtos, casamento, congregar, etc.

Expressar alegria em público faz parte da história das civilizações e é uma característica humana ímpar, em todos rincões do planeta. Nós, da montagem da estrutura de base, chegamos antes e saímos depois. Enfrentamos acessos dificultados por condições precárias que vão desde à restrições de livre circulação por motivos de segurança ou conformação material, como corredores estreitos e escadarias íngremes — normalmente improvisações arquitetônicas de projetos que não contemplam os serviços como fundamentais — ainda que sejam. Assim como restrições implementadas por clubes, buffets e similares em que somos tratados como invasores e não colaboradores.

Para ganharmos o nosso pão, trabalhamos como os feirantes e os trabalhadores de circo — outras tradições de origem antiga — ou somos comparáveis aos povos nômades. Armamos o nosso acampamento, permanecemos por algum tempo em determinado lugar e, logo após o término do que viemos fazer, vamos embora. Afora registros como filmagem e fotos, quase não deixamos prova de que participamos de um evento real. Comparecemos como pano de fundo ou uma lembrança — substância de apelo tão fluido quanto pessoal. No final, quando desmontamos o acampamento e carregamos os equipamentos de nosso uso, resta-nos relaxar pelo trabalho bem feito e poder apreciar paisagens como a que registro aqui, observada junto à Represa de Guarapiranga, onde havíamos acabado de realizar uma festa de formatura.

Era um sábado, entrava o horário de verão e senti, naquele momento, que presenciava uma imagem como se fora o alvorecer do mundo. A ilusão seria mais completa se torres feitas pelas mãos dos homens não interferissem na ilusão da miragem.