#Blogvember / Hominhos De Lata

“Entalhadas nas nervuras do corpo ser — semente — flor”, por Nirlei Maria Oliveira, em As Estações

Lembro de ter aprendido na escola que fazemos parte do Reino Animal. Que somos mamíferos, da Ordem dos Primatas, da família Hominadae. Para completar o nosso lugar no mundo, nos autodenominamos Homo sapiens sapiens. Não basta nos chamarmos de homens sábios. Somos além de sábios, sábios por termos desenvolvido autoconsciência, racionalidade e sapiência. Mas não somos tão sábios a ponto de não percebermos que isso nos afasta dos outros seres do nosso reino, assim como do Reino Vegetal e Mineral. A nossa espécie surgiu a cerca de trezentos mil anos e já fizemos um estrago considerável ao nosso planeta. Por nossa intervenção, extinguimos várias outras espécies vivas – animais e vegetais.

A grandeza da devastação provocada pelo Homem à Terra só é comparável a de um Câncer terminal a uma pessoa. Ou a um vírus invencível que infecta um corpo. Ou ao meteoro que extinguiu os dinossauros há 66 milhões de anos. Cedo em minha vida, percebi a nossa conexão com as forças da Natureza. Que o desequilíbrio de forças em marcha poderá finalmente nos extinguir como espécie, apesar de nos jactarmos de nossa invencibilidade. Sem se dar conta que nossa semente poderá um dia não se transformar em flor.

Somos fascinados pelas máquinas que inventamos e construímos. Modernamente, tem sido muito mais fácil nos identificarmos com as suas qualidades do que nos compararmos positivamente aos seres vivos. Sou admirador de árvores e plantas. Percebo que a sua aventada mudez é substituída por demonstrações óbvias de formas de expressão não percebidas. Em RUA 2, cheguei a colocar uma personagem a conversar com uma sábia árvore de uma ilha central da Avenida São Luiz.

Em 2016, invadi o reino inanimado das construções humanas para brincar com a nossa tendência em humanizar carros, ferramentas e objetos de uso pessoal. Escrevi:

“Numa dessas ocasiões, eu estava a caminho da academia, sempre a passar por ele. Desde que o vi pela primeira vez, havia simpatizado com o Hominho de Lata. Porém, naquele dia, algo mais aconteceu – lhe puseram óculos. Pronto! De imediato, me senti identificado. Eu “nasci” de óculos… Ou melhor, não me reconheço sem os óculos, figurativamente… A saber que as coisas mais intensas que faço são na penumbra, sem rejeitar a luz que se instaura…

Ali estava a mim mesmo, consubstanciado – homem que nasceu para ser nuvem, mas que se tornou lata – enrijecido pelos tempos a fora, em pose de quem carrega o peso e a função de sorrir, ainda que o mundo lhe envergue as costas… Boa sorte a minha de tê-lo como companheiro de percurso, a lembrar de minha (nossa) pequenez, Hominho de Lata!”.

A continuarmos a nossa saga de fugirmos de nossas características que nos liguem à Natureza, é bem possível que tenhamos muito maior parentesco com futuristas homens de lata do que com os seres vivos. Enfim, desumanizados.

Participam: Suzana Martins / Roseli Pedroso / Mariana Gouveia / Lunna Guedes

#Blogvember / Maçã Envenenada

Quem inveja, poderá até reconhecer o seu sentimento e buscar diminuí-lo ou até eliminá-lo. Mas, pelo que eu vejo acontecer, é algo que se instala na pessoa de forma autônoma, como se fora uma doença – um câncer com metástase. E a consome pouco a pouco, resultando em estágios crescentes de angústia e pesar, como se morresse um ente querido a cada dia. Como escreveu Lua Souza, em Estratosférica: “Diferente da maçã envenenada… a dor incurável da inveja mata a prazo”.

Eu (graças a Deus?), não sofro desse mal. Admiro quem consegue realizar certas proezas em variadas áreas de atuação, mas curioso que sou de meu próprio percurso, não trocaria a minha vida pela de outra pessoa, por mais talentosa que seja. Gosto de certos autores, como Machado, cujo estilo elegi como marca do meu, apesar do anacronismo. Sem a maestria na construção de personagens, obviamente. Aos poucos, fui desenvolvendo outras características que tinham como base a escrita do Bruxo do Cosme Velho, porém a admiração pelo viés de fundo psicológico continuou intacto. A admiração gosta de preservar a fonte original acima de quaisquer maledicências, porém a invejoso parece querer aniquilar quem é o objeto de sua origem.

O mais certo é que a inveja mata o hospedeiro lentamente, como se o veneno da emulação insidiosa em vez de atingir o invejado, faz apodrecer dolorosamente quem o experimenta. O invejoso pode ser perigoso, mas por menos que mereça é quem mais necessita de compaixão.


Participam: Suzana Martins / Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Mariana Gouveia

BEDA / Vícios*

Este texto é uma resposta à postagem sobre cigarro do meu querido interlocutor, Luiz Coutinho. Acabou por ficar tão longo, que não queria impô-lo aos convidados da postagem sobre o hábito-vício tabagista. Ele me deu oportunidade de falar sobre um assunto que queria abordar a algum tempo, vinculado ao assunto. Não sou fumante, mas posso falar de cátedra sobre o vício de fumar, pois a minha mãe fumou até morrer. Ela começou tarde, por volta dos 36 anos, quando se encontrava exilada conosco, eu e meus irmãos pequenos, na Argentina. Ela sentia falta do marido, que havia voltado para o Brasil (para continuar seu trabalho de oposição ao Regime Militar) do resto da família, muito apegada que era aos irmãos. Nunca mais parou.

Dessa forma, começou a minha saga como fumante passivo e “traficante”, já que era eu quem comprava os maços de Continental para ela. A revolução se deu quando, em um determinado dia, ousadamente para os meus doze anos, me recusei a ir comprar veneno para quem amava, resolução que mantive dali por diante. Isso não impediu que a Dona Madalena continuasse com o seu vício. Quando vieram as netas, pedi a ela que não fumasse diante delas e acho que cumpria a solicitação, não sem muito esforço, pois amava muito as minhas filhas.

Por ocasião do aniversário de 1 ano da minha caçula, ela saiu da festa direto para o hospital, com insuficiência respiratória. Depois desse susto, aparentemente, havia parado de fumar, pelo menos por algum tempo. Tinha melhorado a olhos vistos o seu aspecto físico e mental. No entanto, soubemos depois, voltara a fumar escondida de todos, com a conivência da auxiliar doméstica, que também fumava. Ao menos, teria diminuído o consumo, ao que tudo indicava, já que não sentíamos o odor típico no seu vasto cabelo. Ela escondia os cigarros com tanta maestria que quase nunca os encontrávamos. Era danada a minha velha mãe!  

Até que um dia, as suas condições gerais não puderam ser revertidas, principalmente porque os pulmões não suportaram a demanda extra de oxigênio exigida. Nessa época, eu era bem mais condescendente com o seu vício, não por aceitá-lo, mas por compreendê-lo. Sabia que ao apego ao cigarro, prioritariamente na mulher, é muito mais difícil de ser revertido, por sua própria constituição bio-morfológica. E porque, três anos antes de seu passamento, eu mesmo quase morrera por causa do meu próprio vício – o do açúcar – que me levara a desenvolver Diabetes, a ponto de chegar a um índice de 715 de glicemia. Fiquei internado por uma semana e saí do hospital disposto a mudar radicalmente de conduta e entendendo melhor o quanto o vício não respeita o conhecimento de que aquilo lhe faz mal.

Ao contrário, fazemos o perigoso “jogo do auto”. Primeiro, a auto enganação, propagando, a quem quiser ouvir, que podemos parar quando quisermos. Depois, passamos a desculpar as nossas deficiências com a autoindulgência, encontrando sempre uma justificativa e jogando a responsabilidade nos outros ou nas circunstâncias. Logo, sentimos a chegada da autocomiseração por nossa lamentável condição de viciados e, finalmente, revoltados com os inimigos que nos apontam o vício, chegamos à autossuficiência social. Não nos importamos mais com a opinião dos que nos cercam e atacamos quem “nos ataca” ou ataca o nosso motivo de prazer.

É muito comum, por exemplo, um fumante se sentir extremamente ofendido quando se fala do malefício do cigarro. É como se estivessem falando mal de “alguém” que amamos… E, então, de uma hora para outra, somos colocados diante de nossa mortalidade. Alguns nem sentem tanto medo de morrer, mas percebem que há pessoas que os amam e, por elas, decidem – “eu vou parar!”.

Um pouco antes de eu chegar à fase mais aguda da doença que desenvolvera e motivou a minha internação, no final de outubro de 2007, morreu Paulo Autran​, no dia 12. Eu ficara, então, impressionado com o relato de Karin Rodrigues, então esposa do grandíssimo ator, mencionando que o último pedido dele foi o de fumar um cigarro, o mesmo que ocasionou o desenvolvimento do câncer que o levou. Pensei comigo mesmo que como ele, eu deveria parar de tomar refrigerantes, comer doces, de acrescentar açúcar ao achocolatados que consumia, entre outros atentados ao meu pâncreas. Estava pesado, com 105 Kg. Talvez já estivesse sentindo o que poderia ocorrer, caso continuasse agindo da maneira que agia, quase como se eu quisesse me matar.

Paulatinamente, os sintomas da hiperglicemia se fizeram presentes – diminuição da acuidade visual, boca extremamente seca, cansaço, micção constante e extrema irritabilidade – entre outros. A Tânia​ chegou a me relatar posteriormente que não estava mais aguentando ficar ao meu lado e já havia anunciado para a minha mãe que se separaria de mim, caso continuasse com aquele comportamento, o que parecia estar se revelando um traço de personalidade permanente. Na verdade, estava passando por um processo chamado de Cetoacidose Diabética, proporcionando tal desequilíbrio metabólico, em que a irritação é uma das suas consequências funestas. Aliás, a participação da minha mulher nesse momento foi decisiva, pois ela percebera que os sintomas se enquadravam no quadro de Diabetes, a tempo de me levar para o hospital e salvar a minha vida.

Anos depois, em um evento de “bodas de vinho” (75 anos de casamento), encontrei uma pessoa com o sobrenome Autran. Perguntei se era parente do belo ator e ela confirmou afirmativamente. Estávamos conversando sobre amenidades, mas tive coragem de perguntar sobre aquela circunstância incrível sobre a morte do ator, pois ela ainda reverberava em minha mente devido à sincronia dos fatos. Ela me revelou que o câncer estava muito avançado e que o diagnóstico estava fechado. Ele sabia que iria morrer a qualquer momento e o seu último desejo foi o de morrer abraçado ao seu companheiro mais próximo – o cigarro.

*Texto de Julho de 2015

Foto por Ku00fcbra Arslaner em Pexels.com

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Darlene Regina / Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Pedroso

O Mau Estar Nos Une*

Dia de feira. Além de legumes, frutas e condimentos, dia de pastel e caldo de cana. A moça que me atendeu, perguntou se o caldo seria natural ou com um pouco de suco de maracujá, abacaxi ou limão. Pedi para pensar. Disse que era uma questão filosófica. A moça olhou para mim como se eu fosse doido. Após deixar a barraca do pastel e caldo de cana para trás, ainda comprei farinha de mandioca para fazer um bolo, mas já havia colocado em ação o processo de filosofar sobre as questões básicas do nosso dia a dia. Decisões das mais corriqueiras até as mais complexas se colocam diante de nós a todo momento. Limão ou maracujá, direita ou esquerda, preto ou branco, porta ou janela, arroz ou feijão, gato ou cachorro, tudo ou nada, mais ou menos, certo ou errado… Perguntas simples, em sua aparência, mas que podem colocar em movimento questionamentos pessoais importantes.

Sempre brinco com a ideia do cumprimento comum que fazemos todos os dias: “Oi! Tudo bem?”… Acompanhada, normalmente, da resposta: “Tudo bem!”… E cada um a ir para o seu lado, sem o prolongamento da conversa. Às vezes, respondo, com um: “Bem, tudo começou em 1961…”. Obviamente, o interlocutor que não esteja acostumado com as minhas excentricidades, já me olha de maneira esquisita… Bem, qualquer um me conhece me olha como se eu fosse estranho. Se experimentarmos responder de maneira diferente: “Não! Vai tudo mal! Está tudo uma merda!” – imediatamente teremos o interesse do interlocutor, com o proverbial acompanhamento de um: “O que está acontecendo?”. Com certeza, a conversa se tornará profícua em temas e solidariedade compreensiva. Afinal, quase todo mundo se sente melhor com a desgraça alheia. Como Nelson Rodrigues já disse, “o mineiro (brasileiro) só é solidário no câncer”. Filosoficamente, esse é um tema de discussão muito rico.

Alguns acreditam que a Filosofia seja um estudo à parte da vida humana, como não se baseasse no próprio Homem. Alguns filósofos, devem crer, se mantém distantes do mundano, como se estivessem a observar animais de laboratório. Outros, ao contrário, propõem que a Filosofia deva ser posta em prática (ou impostas) através de ações baseadas em conceitos que tomam como mandamentos imutáveis. Podem até chamá-la de “práxis”. Eu, já acredito que o movimento da Filosofia deva ser permanente.

Conceitos antigos podem vir a se esboroar em contato com a nova atmosfera, como múmias preservadas por muito tempo longe do ar fresco. De fato, as ideias, sem contato com a vida prática, podem vir a se tornar apenas teses, sem sínteses e antíteses a lhes contrapor. Creio que esse processo se dê porque insistimos em separar o corpo da mente, a experiência da especulação. Não vejo como um se realize sem o outro. Para mim, filosofar é o ar que respiro.

Quanto à escolha do dia, como gosto de acidez de vez em quando a temperar o sabor da minha vida, escolhi limão…

*Texto de 2017, quando o mau estar não se fazia tão presente a ponto de nos desunir…

O Descanso

pão
Penélope / Penelopão / Pão

A Penélope descansou. Seu enorme coração parou de bater nesta madrugada. Fiquei ao seu lado até o ultimo suspiro. Sua respiração foi ficando cada vez mais ofegante, até diminuir e cessar. Seus olhos, os mesmos que estavam embaçados pela idade, porém que ainda assim buscavam divisar qualquer sinal de petiscos em nossas mãos, se fecharam para sempre. Durante o tempo todo, eu segurei sua cabeça e a acarinhei. Enquanto isso, lembrava que chamegos na cabeça e nas costas eram as únicas coisas que gostava mais do que comida. Era como se lhe alimentassem a alma. Ela gostosamente se espichava toda e dava o “sorriso” que lhe caracterizava.

A sorridente “Penelopão” chegou ainda nova em nossa casa, mas já grande o suficiente para ocupar um espaço importante na vida da Família Ortega. Ela acompanhou o desenvolvimento das três adolescentes – RomyIngrid e Lívia – até as moças ficarem cada vez mais ausentes, ocupadas de seus afazeres adultos. Os dois últimos anos foram os mais difíceis e houve episódios que pensamos que ela nos deixaria a qualquer instante. Diagnosticado o câncer, tomamos medidas para que fosse mantida em casa, com assistência e cuidados constantes para minimizar o desconforto e as dores, com a orientação da Tânia.

Nesse período, suas patas não conseguiam mais sustentar seu pesado corpo com eficiência, mas ainda encontrava forças em algum lugar para se erguer e ir de encontro às pessoas que chegavam, as quais recebia – qualquer uma – com sua cauda a dar boas vindas. Ultimamente, reclamava quando ficava sozinha na sala, cozinha ou quintal. “Para, Penélope! Estamos aqui!” – Depois de reclamarmos da “véia”, lá íamos nós a ajudar a insistente a se levantar e caminhar até onde estávamos. Tomávamos cuidado para não apertar seu corpo em algumas partes mais doloridas.

Esse ser, todo amor, deixará como legado a paciência com que recebia as novas moradoras caninas, que logo se afeiçoavam àquela labradora que protegia as novatas das outras companheiras de quintal. Mãezona, era também menina, sempre disposta a brincar e a passear. Adorava banana, maçã, abacaxi, cenoura… bem gostava de quase tudo. Não dispensava um pedaço de pão, que só introduzimos na dieta para dar o remédio que precisava. Na verdade, ela tinha fome de viver.

Sentiremos falta de seus chamados-latidos. O silêncio de sua ausência será, por um bom tempo, ensurdecedor. Sua marca, em nossas vidas, eterna…