BEDA / Vícios*

Este texto é uma resposta à postagem sobre cigarro do meu querido interlocutor, Luiz Coutinho. Acabou por ficar tão longo, que não queria impô-lo aos convidados da postagem sobre o hábito-vício tabagista. Ele me deu oportunidade de falar sobre um assunto que queria abordar a algum tempo, vinculado ao assunto. Não sou fumante, mas posso falar de cátedra sobre o vício de fumar, pois a minha mãe fumou até morrer. Ela começou tarde, por volta dos 36 anos, quando se encontrava exilada conosco, eu e meus irmãos pequenos, na Argentina. Ela sentia falta do marido, que havia voltado para o Brasil (para continuar seu trabalho de oposição ao Regime Militar) do resto da família, muito apegada que era aos irmãos. Nunca mais parou.

Dessa forma, começou a minha saga como fumante passivo e “traficante”, já que era eu quem comprava os maços de Continental para ela. A revolução se deu quando, em um determinado dia, ousadamente para os meus doze anos, me recusei a ir comprar veneno para quem amava, resolução que mantive dali por diante. Isso não impediu que a Dona Madalena continuasse com o seu vício. Quando vieram as netas, pedi a ela que não fumasse diante delas e acho que cumpria a solicitação, não sem muito esforço, pois amava muito as minhas filhas.

Por ocasião do aniversário de 1 ano da minha caçula, ela saiu da festa direto para o hospital, com insuficiência respiratória. Depois desse susto, aparentemente, havia parado de fumar, pelo menos por algum tempo. Tinha melhorado a olhos vistos o seu aspecto físico e mental. No entanto, soubemos depois, voltara a fumar escondida de todos, com a conivência da auxiliar doméstica, que também fumava. Ao menos, teria diminuído o consumo, ao que tudo indicava, já que não sentíamos o odor típico no seu vasto cabelo. Ela escondia os cigarros com tanta maestria que quase nunca os encontrávamos. Era danada a minha velha mãe!  

Até que um dia, as suas condições gerais não puderam ser revertidas, principalmente porque os pulmões não suportaram a demanda extra de oxigênio exigida. Nessa época, eu era bem mais condescendente com o seu vício, não por aceitá-lo, mas por compreendê-lo. Sabia que ao apego ao cigarro, prioritariamente na mulher, é muito mais difícil de ser revertido, por sua própria constituição bio-morfológica. E porque, três anos antes de seu passamento, eu mesmo quase morrera por causa do meu próprio vício – o do açúcar – que me levara a desenvolver Diabetes, a ponto de chegar a um índice de 715 de glicemia. Fiquei internado por uma semana e saí do hospital disposto a mudar radicalmente de conduta e entendendo melhor o quanto o vício não respeita o conhecimento de que aquilo lhe faz mal.

Ao contrário, fazemos o perigoso “jogo do auto”. Primeiro, a auto enganação, propagando, a quem quiser ouvir, que podemos parar quando quisermos. Depois, passamos a desculpar as nossas deficiências com a autoindulgência, encontrando sempre uma justificativa e jogando a responsabilidade nos outros ou nas circunstâncias. Logo, sentimos a chegada da autocomiseração por nossa lamentável condição de viciados e, finalmente, revoltados com os inimigos que nos apontam o vício, chegamos à autossuficiência social. Não nos importamos mais com a opinião dos que nos cercam e atacamos quem “nos ataca” ou ataca o nosso motivo de prazer.

É muito comum, por exemplo, um fumante se sentir extremamente ofendido quando se fala do malefício do cigarro. É como se estivessem falando mal de “alguém” que amamos… E, então, de uma hora para outra, somos colocados diante de nossa mortalidade. Alguns nem sentem tanto medo de morrer, mas percebem que há pessoas que os amam e, por elas, decidem – “eu vou parar!”.

Um pouco antes de eu chegar à fase mais aguda da doença que desenvolvera e motivou a minha internação, no final de outubro de 2007, morreu Paulo Autran​, no dia 12. Eu ficara, então, impressionado com o relato de Karin Rodrigues, então esposa do grandíssimo ator, mencionando que o último pedido dele foi o de fumar um cigarro, o mesmo que ocasionou o desenvolvimento do câncer que o levou. Pensei comigo mesmo que como ele, eu deveria parar de tomar refrigerantes, comer doces, de acrescentar açúcar ao achocolatados que consumia, entre outros atentados ao meu pâncreas. Estava pesado, com 105 Kg. Talvez já estivesse sentindo o que poderia ocorrer, caso continuasse agindo da maneira que agia, quase como se eu quisesse me matar.

Paulatinamente, os sintomas da hiperglicemia se fizeram presentes – diminuição da acuidade visual, boca extremamente seca, cansaço, micção constante e extrema irritabilidade – entre outros. A Tânia​ chegou a me relatar posteriormente que não estava mais aguentando ficar ao meu lado e já havia anunciado para a minha mãe que se separaria de mim, caso continuasse com aquele comportamento, o que parecia estar se revelando um traço de personalidade permanente. Na verdade, estava passando por um processo chamado de Cetoacidose Diabética, proporcionando tal desequilíbrio metabólico, em que a irritação é uma das suas consequências funestas. Aliás, a participação da minha mulher nesse momento foi decisiva, pois ela percebera que os sintomas se enquadravam no quadro de Diabetes, a tempo de me levar para o hospital e salvar a minha vida.

Anos depois, em um evento de “bodas de vinho” (75 anos de casamento), encontrei uma pessoa com o sobrenome Autran. Perguntei se era parente do belo ator e ela confirmou afirmativamente. Estávamos conversando sobre amenidades, mas tive coragem de perguntar sobre aquela circunstância incrível sobre a morte do ator, pois ela ainda reverberava em minha mente devido à sincronia dos fatos. Ela me revelou que o câncer estava muito avançado e que o diagnóstico estava fechado. Ele sabia que iria morrer a qualquer momento e o seu último desejo foi o de morrer abraçado ao seu companheiro mais próximo – o cigarro.

*Texto de Julho de 2015

Foto por Ku00fcbra Arslaner em Pexels.com

Participam do BEDA: Mariana Gouveia / Darlene Regina / Suzana Martins / Lunna Guedes / Roseli Pedroso

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