O Mau Estar Nos Une*

Dia de feira. Além de legumes, frutas e condimentos, dia de pastel e caldo de cana. A moça que me atendeu, perguntou se o caldo seria natural ou com um pouco de suco de maracujá, abacaxi ou limão. Pedi para pensar. Disse que era uma questão filosófica. A moça olhou para mim como se eu fosse doido. Após deixar a barraca do pastel e caldo de cana para trás, ainda comprei farinha de mandioca para fazer um bolo, mas já havia colocado em ação o processo de filosofar sobre as questões básicas do nosso dia a dia. Decisões das mais corriqueiras até as mais complexas se colocam diante de nós a todo momento. Limão ou maracujá, direita ou esquerda, preto ou branco, porta ou janela, arroz ou feijão, gato ou cachorro, tudo ou nada, mais ou menos, certo ou errado… Perguntas simples, em sua aparência, mas que podem colocar em movimento questionamentos pessoais importantes.

Sempre brinco com a ideia do cumprimento comum que fazemos todos os dias: “Oi! Tudo bem?”… Acompanhada, normalmente, da resposta: “Tudo bem!”… E cada um a ir para o seu lado, sem o prolongamento da conversa. Às vezes, respondo, com um: “Bem, tudo começou em 1961…”. Obviamente, o interlocutor que não esteja acostumado com as minhas excentricidades, já me olha de maneira esquisita… Bem, qualquer um me conhece me olha como se eu fosse estranho. Se experimentarmos responder de maneira diferente: “Não! Vai tudo mal! Está tudo uma merda!” – imediatamente teremos o interesse do interlocutor, com o proverbial acompanhamento de um: “O que está acontecendo?”. Com certeza, a conversa se tornará profícua em temas e solidariedade compreensiva. Afinal, quase todo mundo se sente melhor com a desgraça alheia. Como Nelson Rodrigues já disse, “o mineiro (brasileiro) só é solidário no câncer”. Filosoficamente, esse é um tema de discussão muito rico.

Alguns acreditam que a Filosofia seja um estudo à parte da vida humana, como não se baseasse no próprio Homem. Alguns filósofos, devem crer, se mantém distantes do mundano, como se estivessem a observar animais de laboratório. Outros, ao contrário, propõem que a Filosofia deva ser posta em prática (ou impostas) através de ações baseadas em conceitos que tomam como mandamentos imutáveis. Podem até chamá-la de “práxis”. Eu, já acredito que o movimento da Filosofia deva ser permanente.

Conceitos antigos podem vir a se esboroar em contato com a nova atmosfera, como múmias preservadas por muito tempo longe do ar fresco. De fato, as ideias, sem contato com a vida prática, podem vir a se tornar apenas teses, sem sínteses e antíteses a lhes contrapor. Creio que esse processo se dê porque insistimos em separar o corpo da mente, a experiência da especulação. Não vejo como um se realize sem o outro. Para mim, filosofar é o ar que respiro.

Quanto à escolha do dia, como gosto de acidez de vez em quando a temperar o sabor da minha vida, escolhi limão…

*Texto de 2017, quando o mau estar não se fazia tão presente a ponto de nos desunir…

2 thoughts on “O Mau Estar Nos Une*

  1. Realmente seria no mínimo inesperado receber uma resposta diferente do “tudo bem”. Na verdade acho que esse “tudo bem?” é uma questão mais de hábito, talvez de educação, do que realmente querer saber como o outro está. E tem também o lado de que são pouquíssimas as pessoas que eu me sentiria a vontade para responder a verdade se realmente não estivesse tudo bem. Por outro lado, já conheci uma pessoa em que nada nunca estava bem. A resposta ao tradicional “tudo bem?” sempre era “não está muito bem não”. E aí vinha uma lista interminável de reclamações. Com o tempo, parei de perguntar .

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