O Tuaregue

Certa vez, em um hotel desses que já conheceu melhores dias, encontrei uma estatueta. Era a de um cavaleiro berbere, um tuaregue que mantinha a atitude imponente, mesmo sem apresentar a parte de baixo da perna direita, que jazia na base, junto às patas traseiras do cavalo. Essa mutilação não fazia parte da concepção original do artista. Apenas aconteceu, por descuido e consequente queda acidental ou por uma guerra entre espíritos guerreiros. Estacionado entre dois andares da escadaria de emergência, aquele herói que cavalga solitário para o passado ganhou, nesse dia, uma testemunha solidária que agora o revela à luz.

Tuaregue é uma variação nominal de termos que podem designar morador de um jardim, salteador ou, em uma versão folclórica muito difundida, uma ligação à palavra tawariq — “abandonado por Deus“. De alguma maneira, esta imagem ganharia maior significado, se assim fosse.

Porém, o povo seminômade chama a si mesmo de Imazighen — “homens livres” ou “homens nobres”. De fato, esta representação o mostra em nobre e eterna liberdade congelada, como quando controlou as rotas de caravanas pelo deserto do Saara por centenas de anos. Aqui, o que o venceu — o acaso, o imobilismo ou o fantasma do quarto 102?

O Filho Do Porteiro

O meu pai teve várias profissões em sua vida. Foi feirante se considerarmos uma banquinha com produtos de higiene uma “barraca de feira” , torneiro mecânico, marceneiro, pesquisador do IBOPE, almoxarife e porteiro num jornal de economia, na Martins Fontes. Às vezes, eu ia encontrá-lo para vê-lo, já que ele já não morava mais conosco e a mulher que estava com ele não gostava de nossa presença, assim como a minha mãe não gostava que fôssemos à casa deles. O que eu mais gostava é que o Sr. Ortega me entregava quase sempre um exemplar do Jornal da Tarde. Além das páginas de esportes, adorava as de cultura e as crônicas de Lourenço Diaféria.

O jornal acabou por enfrentar problemas financeiros, deixou de publicar em papel e hoje apresenta somente a edição eletrônica. Na época, um jovem que tentava entender o mundo, fiquei intrigado porque uma publicação especializada no setor financeiro não tenha conseguido contornar os efeitos econômicos das sucessivas crises pelas quais passamos. Para se ver que o Brasil não é para amadores ou nem mesmo profissionais. Hoje, eu sei que era o início um processo de modificação no setor de comunicação impresso, que apesar de ainda não haver a concorrência massiva da Internet, decaía por uma razão óbvia para mim: a leitura de modo geral decaiu na mesma proporção da decadência do ensino, em movimento iniciado na Ditadura como projeto de desmonte da educação.

Na época, tanto professores quanto alunos eram encarados como entes que causavam extrema desconfiança. Afinal, o aprendizado requer que pensemos, pensar requer questionar, questionar requer filosofar, especular, contestar o status quo e os esquemas pré-estabelecidos. Nada é mais desesperador para o conservador que, como diz a Lunna Guedes, é um ser preguiçoso, do que ocorrer a revolução dos costumes, a transformação dos tempos, a contestação das classes dominantes, a busca da mudança dos parâmetros políticos. O arejamento do ambiente social para torná-lo mais saudável, tentar encontrar soluções para a diminuição do imenso desnivelamento socioeconômico da população brasileira.

Como bem nos fez ver o atual Ministro da Economia, o Sr. Paulo Guedes, ao objetar a chegada do filho do porteiro ao ensino superior através dos programas públicos de incentivo à educação como o FIES, isso é uma temeridade para pessoas que, com ele e o chefe dele, formam a quadri… a equipe de (des)governantes então no poder federal. Ao educar o filho do porteiro, como eles terão ao seu dispor outros porteiros que, ainda que recebam um baixo salário, possam servir aos deleites dos eleitos: abrir e fechar portas, carregar as suas sacolas de grife, receber as suas correspondências, controlar a circulação de pessoas indesejáveis, recepcionar amigos, distinguir e fazer mesuras aos cidadãos de primeira classe e cuidar de sua segurança?

No início dos anos 80, eu entrei na FFLCH-USP, no curso de História, prestando vestibular. O filho do porteiro então só tinha dois passes para ir e dois para voltar da Zona Norte até a Cidade Universitária, na Zona Sul quatro horas entre ida e volta e um dinheirinho para comer alguma coisa. Eu levava iogurte, maçã e comprava um salgado na lanchonete. Havia o “bandejão”, mas eu preferia economizar para poder tirar cópias dos textos necessários para fazer o curso, já que comprar livros era impensável, devido ao alto custo. Fiquei seis anos frequentando a Cidade Universitária, participei como figurante de “Feliz Ano Velho”, com Malu Mader e Marcos Breda, além da belíssima Eva Wilma; iniciei um curso de Italiano com os alunos de Letras; bati com gosto nos adversários, como médio volante do time de futebol da História (muito fraco); escrevi para o jornal do grêmio da faculdade, fui censurado por usar a palavra “tesão” em um poema (amar como um artesão, com arte e tesão…); escrevi muitos trabalhos literalmente nas coxas (tirei uma das melhores notas de Egiptologia num texto escrito durante o percurso de ônibus); e decidi deixar o curso para começar o de Português, na mesma FFLCH_USP, fazendo um outro vestibular, no qual passei.

O filho do porteiro estava feliz por poder ter contato com a Literatura de uma forma mais intensa. No entanto, “engravidei”. Tudo mudou. Tive que abandonar a faculdade para poder trabalhar integralmente. Eu já trabalhava com eventos, mas como empregado de uma banda. Dois anos depois, eu e o Humberto, montamos a Ortega Luz & Som. Voltei a fazer faculdade apenas aos 47 para 48 anos bacharelado em Educação Física quatro anos em que reencontrei o prazer de estudar, apesar de dormir pouco. Vivi a mesma situação da maioria dos estudantes que precisam fazer os seus cursos e trabalhar para financiar os seus estudos. Fiquei muitas vezes no negativo. O que me movia era poder ter uma opção de trabalho, mas a minha pequena empresa ganhou musculatura e atuar como “personal” ou professor de Educação Física em uma escola foi ficando em segundo plano, principalmente por perceber que a falta de atividade na profissão causa uma defasagem às vezes intransponível. Essa é uma outra questão que os que legislam sobre a educação não entendem estudar é um processo permanente.

O conhecimento exige esforço e demanda recursos. O aprimoramento é fundamental para que o educador possa fornecer subsídios atraentes para que seus alunos prosperarem no aprendizado. O estímulo para quem professa o ensino como missão (me perdoe, Professora Marta Scarpato, que odeia esse termo) deve se dar em uma estrutura adequada, recursos midiáticos, compatíveis com os tempos atuais e a capacitação constante. E, é mais do que claro, salário não apenas digno, mas muitíssimo sobrevalorizado ao que se apresenta hoje. Porém, em se apresentando uma plataforma de governo que adota o Regime Militar como modelo, ou seja, de desmonte da educação, isso não acontecerá. Piorará. É um ciclo vicioso e viciado, pustulento e infectante de doenças do século passado. Isso não é conservadorismo. É putrefação.  

BEDA / Varejão*

Domingo, na minha região, é dia de Varejão — uma feira de proporções aumentadas, talvez duas ou três vezes maior que uma feira comum. É uma feira popular, a qual não gosto de frequentar. Não porque seja popular, mas porque não ache que seja tão compensatória em termos de preço, lotada demais e, principalmente, por sua desorganização… Ou, melhor dizendo, por sua organização peculiar, mormente devido a uma característica do brasileiro — o seu caminhar “criativo”. Adivinho que seja porque as pessoas, ainda que estejam em público, agem como se estivessem em casa, sozinhas.

Talvez por uma compensação do meu pensamento errante, sou uma pessoa com características cartesianas em minha mecânica de atuação no mundo. Para mim, fica quase impossível adivinhar para onde vai cada um que passa por mim, visto que as mudanças de direção são imprevisíveis, tanto de quem vem pela frente, quanto de quem vem por trás… ou de um lado e de outro… É comum ter que parar algumas vezes até perceber que sentido seguem aqueles que vêm ou que vão.

No entanto, hoje tive que passar por perto para comprar remédios na farmácia para nós, humanos, e para os bichinhos, na Dinossauro (loja de produtos para animais). Sofri um tanto para percorrer algumas dezenas de metros, porém colhi, em meio ao burburinho, uma frase dita por um dos transeuntes: “Amanhã, se eu ganhar, já ‘recebo’ na hora”… Para além do erro do tempo verbal, percebi outra característica típica do brasileiro — a de viver de esperança. Mesmo quando não sabe ao certo se ganhará (no jogo?, no trabalho?), já supõe que receberá (“recebe”) no mesmo instante.

Sem esperança, o brasileiro não sobreviveria. É um ser que não consegue perceber que o futuro se faz no presente. Assim como o nosso presente foi construído no passado. O que me leva a versar sobre outra característica que me impede de frequentar o Varejão de rua de domingo: a “Feirinha do Rolo”, um apêndice daquela. Ela se estende por, pelo menos, um quilômetro na transversal. Esse tipo de comércio de escambo já existe há algum tempo, mas há uns dois anos tem se tornado cada vez mais robusta. Nela, são comercializados produtos usados, muitos de origem duvidosa. Outros, são objetos que as pessoas têm em casa e vendem para conseguir alguma grana em uma época de precariedade — televisores, rádios, pequenos móveis, panelas, roupas, etc.

Fico a conjecturar… Este é o futuro que estamos construindo para o nosso País?


*Texto de 2016. Constante de REALidade, lançado no mesmo ano, pela Scenarium Plural — Livros Artesanais. Hoje, a Feirinha do Rolo mudou de lugar e espichou o rabo, talvez mais uns quinhentos metros… Logo, como a situação econômica está a piorar, esse monstro tenderá a nos engolir…

Roseli Pedroso / Lunna Guedes / Mariana Gouveia
/ Adriana Aneli / Alê Helga / Claudia Leonardi

Cópula

Estou a flutuar
como um espírito despregado
de seu corpo…
No entanto, sou eu, ali…
a pairar sobre outro corpo,
a penetrar o seu colo…

Momento
em que a matéria se faz etérea
e a alma se percebe pesada…
Transição entre mundos,
entre gemeres,
entre quereres
entre entes…
Entre mentes…

Entrementes,
somos nós,
entre nós
e ataduras,
a nos libertar…
Livres,
somos vivos,
somos deuses,
somos pós…
Presente,
passado
e futuro…

Foto por Farzad Sedaghat em Pexels.com

Projeto Fotográfico 6 On 6 / Vitrines

Costumamos entender como vitrine um mostruário reservado a um canto ou logo de frente, normalmente envidraçado, para que o interior seja mostrado, mas não tocado. Pode conter peças de roupas, sapatos, peças, utensílios, mercadorias diversas, etc. São, basicamente, objetos de desejo do ser humano para ele ou para outrem próximo — uma amostra de possibilidades de estar (para alguns, ser) — de se mostrar como quer ser visto por ter ou utilizar. Expandindo para maiores possibilidades, o mostruário não precisaria estar fisicamente limitado por impedimentos ao toque do anseio.

Vale do Anhangabaú

Em uma das saídas do Metrô Anhangabaú, me deparei com o edifício a espelhar o passado através do prédio do lado oposto. Esse confronto de concepções temporais faz desta cidade a contradição em movimento constante. Uma imagem explica a outra, a divergem no mesmo instante. Um vale de lágrimas no meio.

Homem estátua em frente ao Mosteiro de São Bento

Sob o sol de 35ºC, um artista trabalha como estátua viva. Representa um suado guerreiro da Idade Média (talvez?) diante de uma das mais antigas construções de São Paulo. É um homem-vitrine deste tempo, de si e do País. Da minha carteira quase vazia, saquei os meus últimos 2 Reais, todo o dinheiro físico que eu tinha.

Manequins longilíneos

Este mostruário contém uma típica vitrine. Revelam roupas reais para corpos irreais. Longe dos biótipos brasileiros. Quem compra, compra a imagem, além do tecido e do corte. Sabe que não ficará como a vitrine adjetiva, mas como peixe que abocanha a minhoca, não resiste ao apelo.

Casa Mathilde — Doçaria Tradicional Portuguesa — Desde 1850

A Casa Mathilde inteira era a sua própria vitrine. Esta imagem me deixou muito triste. Frequentei algumas vezes este local e vivi por momentos a experiência de viajar a Portugal através de sua doçura feito pães de ló e queijadas, pastéis (de nata e de Belém), pudins e trouxas de ovos, entre outras delícias. Era apenas experimentação, como se fora coisa preciosa, que era, mesmo. Tanto devido ao preço quanto a Diabetes. Agora, não sei se voltará a reabrir tão cedo… ou nunca mais.

Vitrine de loja de instrumentos musicais e aparelhos de som

Esta vitrine contém sonhos. Trabalho com músicos e sei o quanto cada instrumento carrega, para além de seu corpo e suas cordas, a cadência, o andamento, a destreza, os “calos” nas mãos e na alma adquiridos em treinos e ensaios para um dia um artista se apresentar diante de uma plateia para alegrá-la, comovê-la, conduzi-la para outros lugares e sonhos. São os sonhadores a fazerem sonhar através de arte de iludir e enlevar — transporte para outros tempos e lugares. Que sonhemos… mas nunca será sem muito esforço.

Avenida Ipiranga, quase esquina com a Avenida Rio Branco

São Paulo, final de Janeiro. Eu caminhava em direção à Praça da República desde a Rua Santa Ephigênia e percebi que aquela seria uma imagem ideal que revela o contraste da vida paulistana entre a idealização e a realidade. Há um esforço grande para a revitalização do Centro. O edifício que apresenta uma pintura em que pessoas “descoladas” enfeitam sua parede lateral foi levantado com o objetivo de atrair moradores de um maior poder aquisitivo. É uma das vitrines do projeto. No entanto, as pichações já demonstram que a manutenção é complicada. Na calçada, encostados a essa mesma parede, sem-tetos observam a cavalaria policial passar. Quem quiser morar por ali, talvez não se sinta à vontade para conviver com a crueza abjeta do nosso estilo de vida.

Alê Helga — Mariana Gouveia — Lunna Guedes