BEDA / Só

L., minha cara,

já lhe disse em outra oportunidade de que somos sós. Mas estarmos fisicamente sós é mais complicado do que ser só. Buscar a solitude em tempos em que somos atordoados por massas sonoras motorizadas, por feéricas luzes artificiais e gente, muita gente, é quase impossível. Somos seres gregários, buscamos estar junto aos outros humanos, mas acabamos por formar comunidades que produzem grupos contra grupos, grupos que servem grupos, grupos que matam grupos. Transformamos a Sociedade em algo que abduz a nossa individualidade, valorizada apenas se exteriormente seguirmos suas regras comportamentais, mesmo aquelas que só deveriam dizer respeito à nós mesmos.

Para nos isolarmos realmente devemos abdicar de nossos anteparos sociais, deixarmos os grupos, buscar nos sustentarmos sem o auxílio de outras pessoas que fazem parte de toda a complexa estrutura que nos serve, enquanto servimos de combustível para seu funcionamento. Devastamos o bioma natural do qual somos dependentes e deveremos extingui-lo se continuarmos nesse ritmo, vindo a extinguir a nós mesmos, transformados finalmente em átomos desaglomerados, sem energia vital.

Aliás, qual seria a energia que nos move? Não passamos disso mesmo união de proteínas (enzimas), carboidratos, lipídeos e vitaminas interagindo em órgãos funcionais que formam nossos corpos? Desenvolvemos o cérebro e a consciência de estarmos vivos; criamos a roda e desenvolvemos a civilização para dizermos que não passamos de unidades de carbono sem uma energia mais sofisticada que nos move para além de sentir o que apenas pode ser visto, tocado, ouvido, degustado e cheirado?

Nós nos emocionamos, sentimos algo que, na falta de melhor palavra, chamamos de sentimentos. Nós nos expressamos pela condução de forças que muitas vezes não controlamos. Em grupo, tanto amar quanto odiar demais é intolerável se colocarmos a Sociedade em risco de não sobreviver. Mas somente apresenta valor se estamos unidos pelo fio condutor da companhia mútua. Estar só significaria que não amamos ninguém ou odiamos a todos, menos a nós? Ou que amamos tanto a nós que nos bastamos?

Eu fiquei sozinho muitas vezes desde a adolescência. Por uma série de fatores, permaneci afastado da minha família em duas ocasiões. Na primeira oportunidade, a minha mãe teve um bar que demandava bastante a sua atenção. Eu devia ter uns 14 ou 15 anos e ela passou a dormir no quarto dos fundos. Meus irmãos, depois de um período, passaram a ficar com ela. Com o meu pai já distanciado há algum tempo, me vi só por um período que não sei determinar, mas que durou pelo menos dois anos, na companhia dos cachorros e gatos. Nessa fase, a minha vocação para ser um sujeito isolado se aprofundou. Começar a ter receio em falar com as pessoas, como se fossem ameaças a serem evitadas, se tornou cada vez mais agudo.

Demorou, mas superei esse comportamento e logo após o fechamento do bar, minha família voltou para a nossa casa. No entanto, pouco tempo depois, com o adoecimento de minha avó paterna, a minha mãe foi cuidar dela. Com a sua morte, continuou a residir na casa. Hoje, eu tenho por mim que ela receava que fosse ocupada por pessoas indesejáveis e lá, continuou. Meus irmãos voltaram a acompanhá-la e permaneci um período bem maior isolado de familiares. Entrei para a faculdade de História e permaneci sozinho na casa da família até conhecer a Tânia, com a qual formei o meu próprio núcleo familiar.

A minha aproximação com uma fêmea da espécie foi um imperativo categórico Kantiano. Evitei o quanto pude entrar para o Sistema, mas a solidão não me dava mais as respostas necessárias que passei a buscar justamente quando me sentia menos só. A minha filosofia de vida me ocupava o suficiente, produzindo crises existenciais em série que nunca me deixava solitário. Em determinado momento, passei a sentir necessidade de estar unido a outras pessoas para se anteporem a mim. E me salvarem de mim. A mulher, o mais complexo dos seres, ao qual sempre amei sem conhecer, seria o enigma a ser desvendado para que seguisse às profundezas de ser humano. E compreender que a solidão pode se ampliar na presença de quem acompanhamos… quando nos falta.

Eu achei interessante você citar o termo não-solidão. Eu me lembro de um antigo poema que escrevi em que a personagem tinha a solidão como companheira, Quando inesperadamente passou a não se sentir mais só, morreu de não-solidão. Será que a solidão é tão necessária e preciosa que morreríamos se em algum instante deixarmos de vivenciá-la?

Imagem: Foto por Jeswin Thomas em Pexels.com

Participam do BEDA: 
Lunna Guedes / Alê Helga / Mariana Gouveia / 
Cláudia Leonardi 

B.E.D.A. / Memória E Vida

Hutger Hauer, como o replicante Roy Batty.

Blade Runner, de Ridley Scott — filme ao qual assisti no início dos anos 80 — além da linguagem cênica e fotografia impecáveis, trouxe-me elementos novos com relação à memória elaborada mentalmente, a nos distinguir como seres conscientes de nossa identidade. A película conta a história de Replicantes, androides com tempo de vida pré-programado — marcados para morrer — que buscam quem os criou para que desenvolva uma maneira que faça com que continuem vivos para além da data de “validade”.

Proust, com Em Busca do Tempo Perdido, ressalta a apreensão da memória através dos sentidos, interpretada pelo intelecto. Os Replicantes contavam com memórias implantadas, corroboradas por imagens em fotos com pessoas que representavam pais, irmãos, parentes, amigos e eles mesmos, menores. No entanto, nenhum daqueles personagens efetivamente existiu…

Ainda que não fossem humanos, os androides passam a valorizar verdadeiramente a vida. Alcançam a compreensão de sua importância incomensurável de uma forma talvez muito mais clara do que os humanos que desperdiçam displicentemente a energia vital de seus corpos. A penúltima cena, desenvolvida em cima do prédio sob a chuva ácida, entre o líder dos Replicantes e o implacável caçador de androides interpretado por Harrison Ford —, passeia por minha memória desde então como uma lembrança viva, ainda que “implantada”.

A compaixão que senti pela triste e terrível figura que tenta continuar a viver por passar a amar a vida foi um sentimento verdadeiro, porém. O que me leva a acreditar que, para além da memória padronizada em recordações estanques, os sentimentos talvez sejam a medida mais completa que venha a nos identificar como pessoas reais e plenas.

Momentos antes de morrer, o replicante Roy Batty, depois de salvar Deckard de uma queda para a morte, diz enquanto cai a chuva: “Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer…”.

Participam do B.E.D.A.:
Adriana Aneli
Cládia Leonardi
Darlene Regina
Lunna Guedes
Mariana Gouveia
Roseli Pedroso

Memorabilia*

Na foto mais antiga (final dos anos 70), Fofinha está no meu colo, meu irmão humano, Humberto, do lado. Na mais recente, de 2012, Domitila e Frida estão comigo.

O passar do tempo é algo que não se pode apreender, mesmo que o registremos com fotos, sons, imagens em movimento e outros quesitos de memorabilia. Sempre será difícil captar a intensidade dos sentimentos e emoções envolvidos na revelação de um fato ou época que já passou. Ainda que haja testemunhas, costuma-se obliterar detalhes e deixar escapar minúcias. Mas algo ainda há sempre de se perceber na construção da memória — colunas, tijolos, plantas e irmãos — de todas as formas.

*Texto de 2012

Viagem Aos 70

Jairzinho, na Copa de 70, agradecendo após um gol

A viagem que pretendo fazer não é aos meus 70 anos de idade, no futuro, mas aos anos 70 do século passado — XX. Mais propriamente, a 1970, tecnicamente, o último ano da década de 60. Ao ver uma reportagem sobre os 50 anos da Copa de 70, não deixei de me arrepiar. Emoções à flor da pele, explosão de sentimentos marcado pelo coração acelerado são prenúncios de que a paixão se faz presente e é irrefreável.  

Por mais que soubesse que vivíamos os anos de chumbo, sendo o meu pai um dos perseguidos pelo regime de exceção democrática (ainda que essa fosse a regra desde a instauração da República), os lances protagonizados pelos jogadores daquele timaço realmente me emocionou. Cheguei a me sentir um bobo. Mas o efeito físico não deixava dúvidas sobre a importância daquele fato em minha vida.

Ao ouvir e ver o depoimento emocionado de Gilberto Gil, ele também um perseguido pela Ditadura, me lembrei que ainda que estivessem privados de sua liberdade, os homens e mulheres em suas celas ouviam a transmissão radiofônica e comemoravam os gols e as vitórias da “Seleção Canarinho”. Para ajudar a tornar aqueles dias oásis de relativa alegria no deserto de ódio, entremeados por gritos de dor e choro, por causa dos jogos não ocorriam os chamados “interrogatórios” — alegoria usada para retratar a ocorrência de “torturas” — onde o objetivo não era o de obter informações, mas o de construir uma narrativa imposta para configurar o ataque ao Estado (que havia), mas não na proporção que estabeleceram. Além disso, as torturas serviam para quebrar o espírito dos acusados-encarcerados. Os mais resistentes, eventualmente sobreviviam. Outros, desapareciam…

Na Copa do Mundo de Futebol do México, em 1970, eu tinha de 8 para 9 anos. Foi a primeira transmitida pela TV para o Brasil. Tínhamos um televisor Bandeirante de 14” PB, porém estranhamente a minha memória dos jogos é colorida. Obviamente porque os revi várias vezes no padrão que entrou em operação no Brasil apenas em 1972. Ou porque a criança vê tudo colorido. Mas nem sempre. Eu me lembro do meu pai, ainda que tivesse um carinho especial pelas coisas da União Soviética, ao me convidar a ver a descida do homem na Lua, em 1969, transmitido pela televisão (ou talvez fosse uma das outras missões), ficou chateado por meu desinteresse em relação ao evento, já que a movimentação era lenta, a imagem granulada e a emoção dos filmes de ficção ajudaram a sabotar o meu olhar para a realidade que presenciava.

Mas hoje, ao rever as jogadas dos jogos da seleção, um arrepio perpassou por minha espinha e se espraiou por meus braços e pernas. Cada lance era perfeito em si. Os passes eram precisos, as ações consequentes, a movimentação era coreografada como se fosse um balé, os gols eram obras primas, mesmo aquele em que Jairzinho errou o chute depois da bola bater em seu joelho e entrar direto. O “Furacão da Copa” — epiteto dado pelos mexicanos, que entendem de furacão — protagonizou lances de força, destreza e rapidez. Tostão, mesmo depois de uma cirurgia no olho, parecia enxergar o jogo feito um ninja vendado. Félix, o goleiro, para mim era inseguro. O capitão Carlos Alberto, um portento de lateral-atacante. A defesa formada por Brito, forte como um touro, e Piazza, um médio-volante recuado que atuava como líbero, era completada por Everaldo, mais postado na retaguarda para dar liberdade ao meio de campo formado por camisas 10 em seus times: Gerson, no São Paulo e Rivelino, no Corínthians, além de Pelé, no Santos. O médio-volante Clodoaldo jogava como os atuais meias mais modernos. Na final contra a Itália errou por preciosismo no gol da “azzurra”, porém no quarto gol, iniciou a jogada com quatros dribles antes do meio de campo, deixando os italianos tontos. Foi um dos protagonistas do gol mais bonito de todos os tempos pela formação da jogada, pela participação de quase todos os jogadores do time em campo e pelo desenvolvimento do meio para a esquerda até o meio para depois chegar à direita na entrada da área adversária culminando com o gol de primeira de Carlos Alberto, com o passe com o toque de mestre de Pelé.

Pelé, hoje é uma figura controversa por questões que envolvem a sua vida particular, como não ter reconhecido a paternidade de uma filha fora do casamento ou por ter se relacionado preferencialmente com mulheres brancas. Na vida pública, por nunca ter se pronunciado claramente contra o racismo. Pessoalmente, disse que nunca se sentiu discriminado, o que causou revolta pelos engajados politicamente na luta pelos direitos das minorias. Para mim a rejeição a Pelé envolve distorções por parte de quem a sente. O menino de Três Corações, criado em Bauru, vindo ainda garoto para Santos é preto, porém os pretos se sentem apartados de sua história. Muitos brancos não perdoam a sua genialidade e protagonismo numa sociedade racista. Os da direita até concedem que tenha existido, os da esquerda se ressentem que não fosse como um Cassius Clay / Mohamad Ali, assertivo em sua militância ou que dissesse frases de efeito como Maradona, morto recentemente. Este, um maravilhoso jogador que fazia com uma perna só o que a maioria não faz com as duas, se envolveu com a Máfia italiana, tornou-se usuário de drogas pesadas e era alcoólatra. Causou muitas confusões e alimentou polêmicas. Porém, também era charmoso, se posicionava à esquerda em suas declarações e foi festejado como um herói nacional argentino. Isso nunca acontecerá com o atleta mais completo que já existiu no mundo para a função de futebolista. Os brasileiros têm a estranha mania de desvalidarem os seus filhos proeminentes. Alguns nem chegam a ser reconhecidos como tal, a não ser que o sejam antes no exterior. Pelé só foi jogar fora, nos Estados Unidos, depois de ter ido à falência por responsabilidade de um sócio capcioso. Lá, conseguiu viabilizar o “Soccer” como esporte e negócio. Os Estados Unidos, apesar do time masculino ainda não ter se destacado, no feminino é considerado um dos melhores do mundo, sendo o atual campeão mundial.

Se tivesse acabado como Garrincha, pobre e com problemas de saúde causado pela bebida, talvez dessem ao melhor jogador de Futebol de todos os tempos (incluindo os que virão) o benefício de ser um homem comum, que erra tanto quanto acerta. Ao contrário de muitos incríveis criadores que têm a sua genialidade ligada à condição de serem péssimas pessoas, sendo incensados, Pelé é condenado porque, sendo tão especial, não deveria errar. Quando estava em campo, no entanto, não há como deixar de perceber que pelas quatro linhas correu um semideus.   

Navegar E Amar

Eu quero ser lido,
mas jamais decifrado…
Eu quero ser saboreado,
mas nunca perder o gosto…
Eu quero ser rio manso para ser navegado
e mar revolto que afunda embarcações…
Quando me mostrar indômito,
buscarei a comunhão…
Quando estiver sereno,
quero causar perturbação
dos sentidos e dos sentimentos…
Quero ser seu e emancipado de mim,
quando estiver consigo…
Barco jamais ancorado,
conduzir e ser conduzido…
Navegar e amar…