Viagem Aos 70

Jairzinho, na Copa de 70, agradecendo após um gol

A viagem que pretendo fazer não é aos meus 70 anos de idade, no futuro, mas aos anos 70 do século passado — XX. Mais propriamente, a 1970, tecnicamente, o último ano da década de 60. Ao ver uma reportagem sobre os 50 anos da Copa de 70, não deixei de me arrepiar. Emoções à flor da pele, explosão de sentimentos marcado pelo coração acelerado são prenúncios de que a paixão se faz presente e é irrefreável.  

Por mais que soubesse que vivíamos os anos de chumbo, sendo o meu pai um dos perseguidos pelo regime de exceção democrática (ainda que essa fosse a regra desde a instauração da República), os lances protagonizados pelos jogadores daquele timaço realmente me emocionou. Cheguei a me sentir um bobo. Mas o efeito físico não deixava dúvidas sobre a importância daquele fato em minha vida.

Ao ouvir e ver o depoimento emocionado de Gilberto Gil, ele também um perseguido pela Ditadura, me lembrei que ainda que estivessem privados de sua liberdade, os homens e mulheres em suas celas ouviam a transmissão radiofônica e comemoravam os gols e as vitórias da “Seleção Canarinho”. Para ajudar a tornar aqueles dias oásis de relativa alegria no deserto de ódio, entremeados por gritos de dor e choro, por causa dos jogos não ocorriam os chamados “interrogatórios” — alegoria usada para retratar a ocorrência de “torturas” — onde o objetivo não era o de obter informações, mas o de construir uma narrativa imposta para configurar o ataque ao Estado (que havia), mas não na proporção que estabeleceram. Além disso, as torturas serviam para quebrar o espírito dos acusados-encarcerados. Os mais resistentes, eventualmente sobreviviam. Outros, desapareciam…

Na Copa do Mundo de Futebol do México, em 1970, eu tinha de 8 para 9 anos. Foi a primeira transmitida pela TV para o Brasil. Tínhamos um televisor Bandeirante de 14” PB, porém estranhamente a minha memória dos jogos é colorida. Obviamente porque os revi várias vezes no padrão que entrou em operação no Brasil apenas em 1972. Ou porque a criança vê tudo colorido. Mas nem sempre. Eu me lembro do meu pai, ainda que tivesse um carinho especial pelas coisas da União Soviética, ao me convidar a ver a descida do homem na Lua, em 1969, transmitido pela televisão (ou talvez fosse uma das outras missões), ficou chateado por meu desinteresse em relação ao evento, já que a movimentação era lenta, a imagem granulada e a emoção dos filmes de ficção ajudaram a sabotar o meu olhar para a realidade que presenciava.

Mas hoje, ao rever as jogadas dos jogos da seleção, um arrepio perpassou por minha espinha e se espraiou por meus braços e pernas. Cada lance era perfeito em si. Os passes eram precisos, as ações consequentes, a movimentação era coreografada como se fosse um balé, os gols eram obras primas, mesmo aquele em que Jairzinho errou o chute depois da bola bater em seu joelho e entrar direto. O “Furacão da Copa” — epiteto dado pelos mexicanos, que entendem de furacão — protagonizou lances de força, destreza e rapidez. Tostão, mesmo depois de uma cirurgia no olho, parecia enxergar o jogo feito um ninja vendado. Félix, o goleiro, para mim era inseguro. O capitão Carlos Alberto, um portento de lateral-atacante. A defesa formada por Brito, forte como um touro, e Piazza, um médio-volante recuado que atuava como líbero, era completada por Everaldo, mais postado na retaguarda para dar liberdade ao meio de campo formado por camisas 10 em seus times: Gerson, no São Paulo e Rivelino, no Corínthians, além de Pelé, no Santos. O médio-volante Clodoaldo jogava como os atuais meias mais modernos. Na final contra a Itália errou por preciosismo no gol da “azzurra”, porém no quarto gol, iniciou a jogada com quatros dribles antes do meio de campo, deixando os italianos tontos. Foi um dos protagonistas do gol mais bonito de todos os tempos pela formação da jogada, pela participação de quase todos os jogadores do time em campo e pelo desenvolvimento do meio para a esquerda até o meio para depois chegar à direita na entrada da área adversária culminando com o gol de primeira de Carlos Alberto, com o passe com o toque de mestre de Pelé.

Pelé, hoje é uma figura controversa por questões que envolvem a sua vida particular, como não ter reconhecido a paternidade de uma filha fora do casamento ou por ter se relacionado preferencialmente com mulheres brancas. Na vida pública, por nunca ter se pronunciado claramente contra o racismo. Pessoalmente, disse que nunca se sentiu discriminado, o que causou revolta pelos engajados politicamente na luta pelos direitos das minorias. Para mim a rejeição a Pelé envolve distorções por parte de quem a sente. O menino de Três Corações, criado em Bauru, vindo ainda garoto para Santos é preto, porém os pretos se sentem apartados de sua história. Muitos brancos não perdoam a sua genialidade e protagonismo numa sociedade racista. Os da direita até concedem que tenha existido, os da esquerda se ressentem que não fosse como um Cassius Clay / Mohamad Ali, assertivo em sua militância ou que dissesse frases de efeito como Maradona, morto recentemente. Este, um maravilhoso jogador que fazia com uma perna só o que a maioria não faz com as duas, se envolveu com a Máfia italiana, tornou-se usuário de drogas pesadas e era alcoólatra. Causou muitas confusões e alimentou polêmicas. Porém, também era charmoso, se posicionava à esquerda em suas declarações e foi festejado como um herói nacional argentino. Isso nunca acontecerá com o atleta mais completo que já existiu no mundo para a função de futebolista. Os brasileiros têm a estranha mania de desvalidarem os seus filhos proeminentes. Alguns nem chegam a ser reconhecidos como tal, a não ser que o sejam antes no exterior. Pelé só foi jogar fora, nos Estados Unidos, depois de ter ido à falência por responsabilidade de um sócio capcioso. Lá, conseguiu viabilizar o “Soccer” como esporte e negócio. Os Estados Unidos, apesar do time masculino ainda não ter se destacado, no feminino é considerado um dos melhores do mundo, sendo o atual campeão mundial.

Se tivesse acabado como Garrincha, pobre e com problemas de saúde causado pela bebida, talvez dessem ao melhor jogador de Futebol de todos os tempos (incluindo os que virão) o benefício de ser um homem comum, que erra tanto quanto acerta. Ao contrário de muitos incríveis criadores que têm a sua genialidade ligada à condição de serem péssimas pessoas, sendo incensados, Pelé é condenado porque, sendo tão especial, não deveria errar. Quando estava em campo, no entanto, não há como deixar de perceber que pelas quatro linhas correu um semideus.   

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