Scenarium / Nem sempre a lápis | Rotina Clandestina

Criminoso

Houve um tempo que evitava declarar ser escritor. Não porque considerasse algo indigno ou vergonhoso, como se confessasse ser um ladrão. Apesar de sê-lo, também. Mas porque, sendo sonho de menino, não acreditava que o fosse, mesmo depois de certa idade e escrevendo muito. Intitular-me um artesão da palavra, se configurava um projeto para o futuro. Cometia o erro de acreditar que faltasse publicar um livro – objeto icônico – que carrega, por si só, o condão de incensar quem o assina, como “escritor”.

A publicação de meu primeiro projeto não me tornou escritor. Assumir a premência de ser um, sim. Consequência de uma necessidade basal – colocar para fora tudo o que me consumia, para não me envenenar com frases mal digeridas e morrer. Ainda que faça parte do contexto, morrer, matar, odiar, amar, construir, destruir, ser franco, saber mentir – viver-escrever.

Porém, para que produza meus textos, estabeleci uma rotina clandestina – roubo meu próprio tempo. Ajo como ladrão, muitas vezes, arrependido. Arrependimento que se dissolve assim que fico satisfeito com o resultado do furto. Já tentei me redimir. Mas quando percebo que minhas expressões vêm a calar fundo em quem as lê, meu receptador-receptor – um leitor, ao menos – produz-se um sentimento de compensação que me faz reincidir-honrar a persona que finalmente assumi.

Eu não apenas roubo tempo. Também rapto pessoas e seus afazeres, surrupio histórias que ouço ou presencio, acompanho passos de tantos, como se fosse um perseguidor. Esquartejo vivências de vários, para criar “Frankensteins” infames. Fuço vidas alheias para chegar a conclusões irreais. Assumo a identidade de outros, cometo falso testemunho. Por vontade confessa, sou um criminoso contumaz.

A tentar equilibrar os afazeres cotidianos, família e amigos, troco o relaxamento do descanso pelo artesanato da escrita. É um ofício vital, com mais erros do que acertos. Contudo, me garante acessar lugares recônditos de mim mesmo. Eu me surpreendo quase sempre em auto revelar quem sou-estou, ainda que tente esconder essa identidade por trás de artifícios verbais – conto do vigário. Entre ações delituosas que me fazem perder e tentativas arredias de me encontrar posso, finalmente, asseverar: sou escritor.

4 thoughts on “Scenarium / Nem sempre a lápis | Rotina Clandestina

  1. Obdúlio, sinto as mesas angústias que você com relação a escrita. Até hoje, apesar de escrever, ainda sinto certa reserva em me auto intitular “Escritora”. Não sei nem o porquê dessa resistência.Talvez porque não viva para isso. Sou preguiçosa assumida e só gosto de escrever quando a vontade vem.
    Falta-me disciplina assim como falta a mesma nas minhas atividades físicas que estou sempre boicotando. Enfim, você é escritor sim e tem ainda muito a dizer. Por favor, siga em frente!

    1. Agradeço a sua resposta, Roseli. mas a considero escritora, sim. Creio que a quantidade não sirva tanto para designar uma titulação. Como ressaltei, para mim tem a ver com o que nos traduz melhor. Escritor é o que me define como expressão. É comum ser mal interpretado quando falo. Os meus pensamentos surgem aos borbotões e muitas vezes me perco na fundamentação do que quero dizer. Para complementar com um exemplo, chamo a atenção para Dorival Caymmi, que é um dos mais importantes compositores do Brasil, mas produziu relativamente poucas canções. A sua obra tem muito maior relevância do que tantos que compuseram dezenas de títulos.

      1. Concordo com você. Não é a quantidade mas sim, a qualidade. Continue a perseguir sua voz de escritor. Não desista. Há alguns anos, passei por situação de crítica que quase me destruiu a vontade de continuar escrevendo. Que bom que persisti e voltei a sentir prazer em escrever. Nosso maior leitor somos nós mesmos. Não desista nem do leitor, nem do escritor. Você tem muito a dizer. Abraço!

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Imagem do Twitter

Está a comentar usando a sua conta Twitter Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.