Eu senti necessidade, por algum motivo — talvez saudade — em relatar o que relatarei a seguir, neste dia da Invenção do Brasil.
Terminei o meu domingo tomando uma vitamina de abacate com pão preto integral. Não pude deixar de me emocionar com a lembrança dos tempos em que, em algumas ocasiões, a minha mãe nos dizia, a mim e aos meus irmãos, que naquele dia ela faria vitamina de abacate, apanhado do abacateiro no quintal, misturado a leite (reconstituído com soja) e açúcar cristal, acompanhado de pão amanhecido. Não sei quanto aos meus irmãos, Humberto e Marisol, mas eu ficava totalmente feliz com a notícia. Adorava molhar o pão na vitamina e mordê-lo amolecido dessa forma. Achava aquilo a melhor refeição antes de dormir ou, mesmo, em qualquer hora do dia. Anos mais tarde, vim a saber que aquela era a única coisa que tínhamos para comer e, por isso, a minha mãe usava da estratégia de parecer que era apenas uma variação do cardápio.
Eram tempos difíceis para a nossa família. O meu pai tinha ideias muito próprias e não gostava de ser dependente da família de minha mãe e decidiu mudar-se, junto com mulher e filhos, para a Vila Nova Cachoeirinha, na periferia norte de São Paulo, um lugar distante do centro onde inicialmente morávamos e muito mais distante ainda da Penha, na Zona Leste, onde morávamos um tempo antes. O meu pai era um idealista, um ativista de esquerda e a minha mãe o amava a ponto segui-lo para onde fosse, como quando o seguiu até a Argentina, onde se refugiou da perseguição do aparelho de repressão da Ditadura Militar.
Na antiga fazenda recém loteada onde foi construída a casa sem reboco e cercada por uma cerca viva de “bucha”, que era devorada eventualmente por cavalos, tínhamos que puxar água do poço, já que não havia água encanada. Como também não tínhamos chuveiro elétrico nos primeiros anos, esquentávamos a água do banho em uma grande tina de metal na laje, com a luz do sol no verão e à lenha, no inverno.
Quando o meu pai foi preso, durante algum tempo, os nossos sábados e domingos eram preenchidos em procurá-lo pelos quartéis. Ela nos levava com a nossa melhor roupa e ficávamos esperando receber alguma notícia das autoridades. Tenho certeza de que, graças a isso, o meu pai não foi mais um na lista de desaparecidos. Durante a sua estadia nas dependências dos porões do DOI-CODI, ele foi torturado seguidamente para fazê-lo delatar supostos planos dos grupos armados. Quando saiu da prisão, evitava ficar muito tempo em casa, mudando de localização sempre que podia.
As vitaminas de abacate com pão pertencem a esse tempo, bem como esperar as galinhas botarem alguns ovos para termos uma refeição um pouco mais rica. Apesar de todos os percalços, me lembro com saudade de uma época que cantava o Hino Nacional com orgulho, um pouco antes de entramos em aula, com a mão direita no peito. Desenhava com entusiasmo a Bandeira Nacional. Amava o meu País e nunca imaginava deixá-lo. O meu pai dizia que quando a “Revolução” comandada pela “Vanguarda” vencesse, eu estudaria na União Soviética e aquilo me revoltava. Como poderia deixar o lugar que amava tanto, se nem de frio eu gostava?
Hoje, eu sei que esse amor não foi correspondido…
*Texto de 2013, quando percebia que a corrupção endêmica grassava na sociedade brasileira. Nunca pensei que pudesse piorar. Estava enganado. Atualmente, além da crise ética, temos um governo que inviabiliza os ganhos sociais adquiridos, além de adotar um projeto de desmonte institucional e ataque direto à população mais carente, o que se assemelha muito a um genocídio.
Adriana Aneli / Alê Helga / Claudia Leonardi / Darlene Regina
/ Lunna Guedes / Mariana Gouveia / Roseli Pedroso
Seu texto me trouxe uma lembrança parecida Obduliono, talvez menos dolorosa mas, que tem em comum a força materna e a estratégia da variação de cardápio. Minha mãe fazia “engrossado de fubá” e eu era o único que não gostava de jeito nenhum. Trocava por abacate do quintal também. Apanhava-os verde e colocava para amadurecer para manter meu estoque particular. O abacate pra mim é sagrado! Fiquei emocionado com seu texto… obrigado por compartilhar! Um forte abraço
O abacateiro que nos fornecia seus frutos durou anos! Foi atacado por alguma praga. Era também onde pendurava a minha rede e imaginava as minhas histórias. Agora, estoque particular é uma estratégia muito boa!
Na realidade o pé de abacate ficava bem rente ao muro, do lado da vizinha e as galhas pendiam para nosso lado… mas tinha um amor platônico por ele, algo parecido com o que “Zezé” sentia em “Meu Pé de Laranja Lima”. A estratégia era apanha-los no pé ainda, para que não partisse garantindo assim um fruto intacto para minha refeição do dia seguinte. Abacate pra mim só perde para o “Arroz Doce” mas aí já é outra história kkkkkkkk. Que seu dia seja iluminado e produtivo meu caro! Abraços
Nossas infâncias têm semelhanças na conduta de nossas mães. A minha, se virava nos 30 para suprir a falta de alimento em nossas mesas.Lembro que ao dar a luz à minha irmã caçula, ela ganhou uma quantidade enorme de aveia. Nunca tinha comido nada com aveia e me lambuzei e nunca me enjoei. Boas lembranças!
Aveia na veia! Apenas esqueci de mencionar, mas acho que vou editar que era a época de leite reconstuído, horrível! Não sei se era com soja ou algo assim, mas o gosto não era bom!
Bem lembrado, horrível mesmo!
Eu achei seu texto de uma delicadeza absurda… Obrigada por compartilhar esses recortes do passado com a gente! Parece outra vida essa de colocar mão no peito e sentir orgulho dessa loucura de país, né? Um país que fez tão mal pras pessoas como fez pro seu pai e segue fazendo pr’a gente hoje…
Luly, alguns poderiam entender que eu tenha um sentimento sadomasoquismo, mas foi aqui que nasci, constitui a minha família e vivi a grandíssima parte da minha vida. Não tenho esperança, mas apenas desejo de que possamos reverter essa situação absurda de futuro sombrio.
É, meu caro, a realidade esconde tantos capítulos, personagens… eu lia há pouco um trecho de quarto de despejo, algo bem próximo do seu relato. Embora em outro tempo, outra parte da cidade. De alguma maneira, as histórias se repetem.