Enquanto ouço Miles Davis, escrevo sobre as idades. Prestes a completar 60 anos, postarei textos sobre os meus aniversários. Não pretendo apenas identificar a passagem do tempo sobre meu pensamento, mas tentar me reconhecer ao longo de um período determinado. Compreende a fase em que comecei a me desconhecer diante do espelho — quem estava a me observar do outro lado seria eu ou um estranho? Os fatores que me levaram a esse estranhamento foi um processo físico-fisiológico. Por conta de uma crise diabética, fui forçado a emagrecer. Diante de uma pessoa fisicamente diferente do gordinho com o qual convivia comigo há vários anos, recebi a prova irrefutável de que a mente se sobrepõe à matéria.
Houve época que evitava me por diante de algo que me acusava de ser diferente de quem pensava ser. Todos as manhãs, eu levava um susto ao me olhar no espelho, ainda que revelasse o meu contrário imagético. Ali, supostamente, estava eu mesmo, um milionésimo de segundo mais novo, tentando encontrar semelhanças comigo. Envelhecer tem causado igual estranheza. O jovem tem se surpreendido com o velho que o observa por trás do anteparo de “vidro polido e metalizado que reflete a luz e reproduz a imagem dos objetos colocados diante dele”. Por isso, tenho colocado pedaços de pão no caminho quase que tentando encontrar o caminho de volta a… sei lá… de onde eu vim? À seguir, o primeiro texto.
Há 56 anos, vim dar à luz na tradicional Maternidade de São Paulo, que não existe mais. Era uma segunda-feira, como hoje, às 2h da manhã. Hoje, a esta hora, estava na estrada, voltando de mais um evento. Algo simbólico, já que nascer é colocar os pés no caminho em direção a… algum lugar que pode não ser um lugar. Pode ser um tempo… um estado de ser… ou não ser. Enquanto isso, trabalho — para me manter, para me colocar à prova da convivência mútua, para me valorizar como alguém que obtém o pão com o suor do seu rosto. Não me permito que seja de outra forma. Trabalho por mim e por todos os meus. Gosto do que faço — do esforço, do translado constante (apesar de não dirigir), de poder atuar um dia em cada lugar, de ultrapassar as dificuldades e alcançar os meus objetivos, ainda que aparentemente pequenos. Sou filho da voragem paulistana de nascer, viver e morrer no asfalto, mas amo o mato e o mar. Dou um passo e vivo um dia de cada vez. Sinto que estou onde devo estar, até o dia que serei eu, não sendo ninguém… a alcançar a plenitude.
*Texto de 2017