
Eu não estava ali porque quisesse. Aliás, queria estar com aquele grupo de amigos, mas não me apetecia a ideia de assistir àquele filme, em especial. Mas fui voto vencido quanto a optar por um filme romântico, avessa à aquelas questões. Assim, assistiríamos “As Pontes de Madison”, com Clint Eastwood e Meryl Streep. Naquele dia, além dos amigos habituais, outro membro se uniu à turma. Conhecido do casal gay, não era mais novo ou mais velho do que o resto de nós, entre os 23 e os 25 anos. Em sua apresentação, apertou a minha mão com força e esboçou um quase sorriso, conquanto eu fizesse um movimento de corpo que denunciasse a troca de um beijo de saudação, o qual ele recusou.
– “Oi! O meu nome é Honório! Prazer!” – disse – “Oi! Sou a Ana!” – respondi, sem adicionar o “prazer é meu!” de praxe. Honório não me causou uma boa impressão. Desde o início, fez me sentir um pouco desconfortável, mesmo eu estando com o meu vestido mais solto… Eu parecia uma estranha pela primeira vez, naquela turma. Fiquei mais chateada ainda quando, por escolha dos outros, acabei por sentar ao seu lado. Tive comigo que seria mais uma experiência que viveria de espírito aberto.
Eu não era dada a frescuras em quaisquer circunstâncias. Por exemplo, em termos de comida, traçava o que viesse pela frente, de japonês a churrasco, bebia vinho, destilado e do outro lado (desculpe o trocadilho infame). Assistia, de shows de sertanejos e pagodeiros, à música de câmara. Eu me considerava divertida e a minha ampla gama de interesses tentava, antes de tudo, demonstrar certa epifania, espécie de celebração à vida. De tudo que via, ouvia ou degustava, incluindo namorados, sempre apreendia alguma substância. Honório (aliás, que nome, hein?!), apesar de minha aptidão democrática, não estaria entre os meus escolhidos para uma “degustação”. Não que fosse feio. Ao contrário, até que tinha os seus atrativos. Não era um tipo atlético, mas não estava fora de forma, se bem que não devesse ser um esportista. Apresentava um nariz “afirmativo”, em que pousava óculos que faziam com que parecesse um intelectual, desses, metidos a besta, com as suas fórmulas e elucubrações pré-concebidas, desenvolvidas em livros sebosos, um exemplar de homem que eu preferiria manter à distância.
Comprei um enorme saco de pipocas e um copão de refrigerantes, o que ele pareceu desaprovar pelo olhar de desdém que passeou sobre eles, o que aumentou um tantinho o meu desconforto, o que por si só, já me causava estranheza, já que eu normalmente não dava bola para o que ninguém pensasse sobre mim. Essa minha atitude fazia com que eu me enturmasse nos grupos mais esquisitos, mas aquele cara… Porém, o clima melhorou um pouco quando ele me pediu um bocado da minha pipoca e tomou um golão do meu refrigerante. Ele disse que usualmente não tomava esse tipo de bebida, mas que queimaria as calorias no dia seguinte, quando corresse no “Ibira”. Ôpa! Então corria como eu? Já tínhamos algo em comum. Menos mal…
O sujeito devia estar com fome, pois quase acabou sozinho com a pipoca antes mesmo de começar o filme, durante o qual, permaneceu calado e imóvel. Eu, de minha parte, assisti com muito boa vontade, pois o achei um tanto melodramático. Os meus amigos cochichavam uma coisa ou outra, que eu não chegava a ouvir direito e que eu fingia concordar, meneando a cabeça afirmativamente.
Em determinado momento, no entanto, se deu a seguinte cena: na tela – Meryl Streep, ou Francesca – dentro da caminhonete, sentada ao lado de seu marido, estava à espera do sinal do semáforo abrir (mesmo sendo aquela uma cidadezinha com quase nenhum movimento), enquanto Clint Eastwood, ou Robert Kincaid, permanecia debaixo da chuva, aguardando que ela saísse da caminhonete para escapar daquela vida provinciana que vivia e se jogasse em seus braços e à sua paixão. No instante que vimos Francesca apertando o trinco do veículo, indecisa sobre que atitude tomar, Honório tomou a minha mão que repousava no braço da cadeira e a apertou com vigor e apreensão, quase da mesma forma. Ao me virar para reclamar do ato, percebi que rolavam grossas lágrimas a lhe banhar o rosto por trás de suas lentes. Habitualmente, alguém poderia considerar àquela uma atitude menos máscula, assim como eu mesma, mas naquele homem discreto, aquilo me pareceu extremamente comovente. Aos poucos, soltou delicadamente a minha mão, dedo por dedo, em um movimento intensamente sensual. Sorri em resposta ao seu gesto. Estava me sentindo envolvida em uma situação realmente desconfortável… Caçadora que eu era, estava acostumada em atacar as presas. Se realmente quisesse comê-las, não deixava opção de fuga. Desde o início de nosso encontro, diversas circunstâncias fizeram com que eu me sentisse acuada.
Mais tarde, fomos todos a uma pizzaria e ele se mostrou arredio à minha proximidade. Por meu turno, eu não estava me reconhecendo – não conseguia demonstrar minha força habitual. A turma chegou a discorrer sobre o filme de forma passageira e ele não fez nenhuma observação sequer. Apenas abaixava o rosto, esboçando um sorrisinho no canto da boca que me irritava profundamente. A sua voz, não muito grave, só ouvi em duas ou três ocasiões. Ao nos despedirmos, disse:
– “Soube que gosta de correr! Vamos marcar para as oito horas da manhã, no Ibirapuera?”
– Pensei – “O que, às oito horas da madrugada? Caramba! Estávamos saindo de um sábado à noite para um domingo e já passava das duas!” – Sorri e respondi:
– “Sim! Onde nos encontramos?”
– “Eu pego você em sua casa! Sei o seu endereço. Então, até às sete e meia!”
– “Estarei à espera!”.
Então, e apenas então, nos despedimos com um beijo no rosto, tímido e hesitante. Durante o tempo que me restava para descansar, mal pude dormir de expectativa para o encontro que ocorreria dali a algumas horas. Quando Honório chegou, quase ao mesmo tempo, começou a chover torrencialmente. Algo inédito para aquele mês de agosto, muito seco. Pedi para ele entrasse e enquanto esperávamos a chuva amainar, tomamos um café e conversamos sobre a cena no cinema. Perguntei porque se emocionara tanto com aquela passagem da caminhonete, a ponto de apertar a minha mão com tanta força. Estávamos a certa distância um do outro e Honório se aproximou um pouco mais de mim. Olhando em meus olhos, disse, tentando ser o menos formal possível, o que era difícil para ele:
– “Eu simplesmente percebi que aquela era a hora de tomar uma decisão capital. Momento pelo qual muitos nós passamos em nossas vidas, definidor do caminho que tomamos, se para a esquerda ou para a direita. O segundo em que dizemos ‘sim’ ou ‘não’. O instante que se perpetuará pelo resto dos nossos dias. Um instante como este…” – E, aproximando a sua boca da minha, me beijou suavemente…
Horas depois, a chuva transformou-se em garoa. Ficamos namorando e conversando o resto do dia. Honório relatou que o nosso encontro fora arranjado pelo casal gay Belo e Bono, decoradores do qual era cliente. Achei engraçado quando me confessou que comeu a minha pipoca e tomou o meu refrigerante para que eu prestasse mais atenção ao filme e a ele. Que se apaixonou por mim assim que me viu e que aquela cena específica o convenceu que tinha de fazer o que fez. Contra todos os meus prognósticos, estamos juntos desde então, há dezoito anos. Construímos pontes duradouras e sabemos que optamos pelo caminho certo, com Roberto e Francesca, nossos filhos, a nos acompanharem…”.
Participam do BEDA: Claudia — Fernanda — Hanna — Lunna — Mari