Projeto Scenarium 6 Missivas / Novembro-18 / Carta A Bento

Capitu
Maria Fernanda Cândido, como Capitu

Como vai, Bento? Você não me conhece, mas eu o conheço. Na verdade, muita gente o conhece, ainda que talvez não saiba. Culpa sua, que divulgou sua passagem pela Terra. Com o passar do tempo, no entanto, a sua figura acabou por se tornar secundária em sua própria história. Mais adiante, falarei sobre isso.

Já me disseram que pareço com você. Pode ser. Há algumas similaridades. Você fez seminário, eu flertei com a possibilidade de me tornar frei franciscano. O meu orientador voltou para a Bélgica e tive lhe dar com um novo que pediu mais tempo para me conhecer. Disse que não poderia esperar mais um ano. Conheci a minha futura esposa logo em seguida.

Nunca quis seguir Direito, que supostamente busca a justiça. A única equivalência possível é que nasci sob Balança, de pratos sempre desequilibrados. Passei por situações que o mau humor me afastou das pessoas – pura casmurrice. De certa forma, não me importava tanto assim se ficasse só. Hoje mudei. Busco contato, alcancei reputação de ser boa praça. Espero ter ultrapassado a condição de ser que viesse a morrer amargurado se soubesse (ou presumisse) que uma das “minhas” filhas não fosse minha. Eu as amo tanto…

Sabe o que conseguiu com tudo que nos passou com a sua desconfiança? Que Capitu se tornasse cada vez maior do que você. Por algum sortilégio de cigana ou porque Capitu tenha ultrapassado sua condição de mulher resignada a seu papel de esposa silente, ela alcançou status de ícone feminino. Seus olhos de ressaca atravessaram quase dois séculos e continuam a fazer sonhar homens e mulheres.

Ela não era dissimulada, era alguém que sabia o que queria e quis e fez. Para se defender, usou das armas a que muitas mulheres utilizavam à época e ainda hoje, quando supostamente têm maior liberdade. Desculpe, meu caro, mas Capitu não cabia no personagem que gostaria. Pelo menos, você, Bento, teve a capacidade de nos revelar a verdadeira identidade dela através de seus olhares. Não se engane, não era o mesmo que o de Sancha, por ocasião do velório. Era mais profundo…

Creio que com a morte inesperada de Escobar, ela sentiu que um modelo de homem que admirava também morria. Ainda que não tenha se envolvido tão profundamente a ponto de se relacionar sexualmente com o seu amigo, ela via nele a possibilidade de interação que deveria ter consigo. Que eventualmente se prenunciou quando eram crianças. No final, perdurou a sensação de anticlímax.

Enfim, teria uma pergunta a lhe fazer se soubesse que responderia com sinceridade: você realmente amava mais a ela ou a Escobar? O rosto que via em Ezequiel não seria a face que gostaria que lhe acompanhasse amorosamente durante toda a sua vida? No entanto, até seu filho você perdeu durante a trajetória que decidiu desenvolver.

Oh, Bento!… Tão auto enganado, tão digno de pena, tão enganado… Boa noite, oh, insone!

8 thoughts on “Projeto Scenarium 6 Missivas / Novembro-18 / Carta A Bento

  1. Já faz um dos dois textos teus de Capitu e Bentinho que me deu vontade de reler Dom Casmurro. Reli bastante uns trechos aqui acolá qdo era bem jovenzinha. Com quais olhos eu percorreria agora as linhas de Machado?! Excelente inquietação insone!!!

    1. Moça, eu mesmo preciso reler Dom Casmurro. Guardo passagens de memória, que eu consideraria mais como afetivas do que reais. Talvez falseie de alguma maneira o conteúdo do texto de Machado e cometo o erro de adiar a releitura com receio de perder a “inocência” das leituras anteriores. Ao pesquisar para o texto, me surpreendi com o frescor de alguma passagens e tenho por mim que em breve me reencontrei com Bentinho e Capitu.

  2. Ainda hoje não entendo onde encontram espaço para fazer de Capitu (e seu papel de esposa) para ser ícone feminista. Ainda hoje me divirto com a mulher que enxergam em Capitu. Me sinto cega, porque vejo apenas uma criatura descrita por um homem, totalmente incapaz de entendê-la ao longo de toda narrativa. Toda e qualquer ação por parte dela é vista como agressiva, descontrolada. Aliás, são dois personagens falhos que não sabem demonstrar sentimentalidades.

    Abre aspas. A preguiça grita em minhas extremidades. Fecha aspas.

    Tem uma parte desse livro em que o narrador revela que Capitu gosta de ser vista… e eu ri alto porque somente um homem pensaria tal coisa. Só faltou fazer fiu fiu,

    Bem, esse ainda hoje é o pensamento da maioria dos homens. E toda essa estrutura de Bento e Capitu era necessária para justificar a suposta traição, arquitetada a partir dos preconceitos do Autor, um conhecido machista.
    Quanto a sua semelhança para com o personagem… talvez seja o fato de ambos serem narradores de personagens que não compreendem tão bem. rá

    bacio

    1. Como eu já citei para a Moça, minha leitura é antiga e “preconceituosa”, já que datada. Sobre o fato de Capitu ter se tornado um “ícone feminino” é um fenômeno identificável, muito mais pelo que eventualmente supõem/interpretam seus leitores do que os dados disponíveis possam revelar. E sim, os personagens são defeituosos… e magistrais, por sua riqueza de detalhes, ainda que realizado por um escritor machista – autor/personagem/autor – impressionante. Afinal, se assim não fosse, não estaríamos falando sobre Dom Casmurro quase um século e meio depois.

      1. Mas o nível da discussão ao redor de Dom Casmurro é que me espanta, meu caro. Não há dúvida de que é um grande livro, no entanto, a maioria que o discute, não o leu. Apenas repete as frases de efeito. E o conceito literário de Assis se repete nos autores desse tempo, a incompreensão do ser feminino persiste. Poucos homens autores se libertam do modelo de Capitu, você mesmo projetou um ideal de mulher em Capitu ao dialogar com Bento. Me divirto, sabes!

      2. Sim, concordo. Sou um sujeito em busca de compreender o ser feminino e igualmente me divirto com as minhas próprias divagações em torno de meu desconcerto em não conseguir alcançar a mulher totalmente. Sou como os primeiros homens (e mulheres) que ao se depararem com algo incompreensível, veneravam. A diferença é que não deixo num pedestal. Ao contrário, não deixo de tentar compreender o objeto amado. Em verdade, busco ter o máximo contato possível com ele. Incluindo as “Capitus” reais e as inventadas.

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