Outro dia, no supermercado, esperava na fila do caixa enquanto, à minha frente, se encontravam uma mulher razoavelmente jovem com uma criança pequena no colo e mais duas grudadas à sua saia. Deviam ter cerca de um ano de idade de diferença entre uma e outra. O meu primeiro pensamento foi o de lamentar pelo futuro incerto dessa família tão típica de nossa Periferia. Era bem possível que o pai das crianças estivesse trabalhando. Era possível que não estivesse junto a eles. Algo tão comum de nossa Periferia. Nossa Periferia é o mundo todo. De agora e de todos os tempos. Quase imediatamente deixei o primeiro pensamento de lado e viajei para antes na minha própria história.

Olhei para as crianças novamente. Eu seria aquela curiosa, que olha tudo ao redor com os olhos de novidade. Observa a mãe conversando com a caixa, acarinha os pés do irmãozinho no colo dela, sorri um sorriso tímido quando vê passar o único pacote de bolacha além das outras poucas compras. Apesar de pequeno, será ele a carregar com dificuldade, orgulho e coragem de homem da casa as sacolas até a sua casa, com a mãe, a irmãzinha do lado querendo ajudar e o terceiro-filho-segundo-irmão no colo, três anos mais novo.
Com as ausências constantes de meu pai, minha mãe decidiu não ter mais filhos, normalmente fertilizados nos retornos eventuais do marido à casa. O que era a sua família diante da importância da admirável luta pela redenção do povo pela revolução (que nunca houve)? Diriam que seria um motivo muito melhor do que simplesmente sair pela porta e nunca mais voltar como era uma quase regra do abandono parental, além de outros menos incisivos. Volta e meia, choro por meus irmãos que nunca vieram à luz, enquanto me solidarizo com a mulher sem saída melhor do que recorrer ao desparto sequencial.
O terceiro filho de nossa família, meu irmão Humberto, hoje completa mais um ano de vida. O último dos três filhos vivos de Dona Maria Madalena e Sr. Odulio Ortega. Somos sócios na Ortega Luz & Som há uns 30 anos e entres brigas e concordâncias percorremos unidos a caminhos paralelos. Temos personalidades e gostos diferentes e mútua admiração pelo que nos tornamos — pais imperfeitos, mas presentes; irmãos discordantes, mas solidários; homens comuns, mas que tentam avançar na compreensão do mundo; filhos reverentes à mãe Natureza e que dão valor à vida. Eu sou mais intelectualizado (uma forma de desvio do racionalismo), enquanto ele é o mais prático. Enquanto eu dou voltas em torno da Terra, ele vai direto de um ponto ao outro. Enquanto me encanto com versos de Pessoa, ele lê e destrincha um diagrama eletrônico como se fosse uma simples sequência de números naturais. Enquanto eu faço as relações públicas e contatos da Ortega, ele é o que faz as coisas acontecerem. Enquanto ele cultua um drama, eu os roteirizo e conto histórias dramáticas. Foi o meu primeiro leitor e passei a escrever mais assiduamente para vê-lo encantado pelo que eu criava.
Enfim, estamos juntos quase há quase 60 anos e apesar das provectas idades, somos chamados de “meninos do som” por muitos. Talvez reconheçam a juventude em nossos corações ou porque só conseguem entender que apenas jovens possam carregar, montar e operar a quantidade de equipamentos de som e iluminação levados ao segundo andar de buffets, salões de clubes e outros espaços horas antes. Para depois ficarmos acordados até de manhã para voltarmos à lida algumas horas após. Além da necessidade de trabalhar, gostamos do que fazemos. Porque vivemos enquanto trabalhamos. E sobrevivemos. Passamos pela Pandemia até agora e esperamos retomar o nosso caminho nos cuidando, por nós e por quem amamos. .Pelo tempo que nos for permitido pela boa sorte, pelos homens e por Deus, estaremos juntos, Humberto! Parabéns por seu dia!