BEDA / Pescador

PESCADOR

Estou junto ao mar, na praia, em veraneio. Estou retirado do resto da família, a terminar o projeto do meu livro de crônicas¹ que deverá ser lançado pela Scenarium, em março². Cheguei cedo, antes do aumento do movimento prometido para este sábado de sol. À beira d’água, pescadores amadores ainda posicionam as suas varas antes da maior afluência de banhistas.

Pouco a pouco, a areia vem a ser ocupada por coloridos guarda-sóis e brancas tendas, erguidas por turistas de tez coloridas, constituídas por vários tons de branco (como o branco-escritório, por exemplo) e outras colorações.

À minha frente, um alegre grupo de senhoras jovens há mais tempo fazem uma inaudita algazarra. Parecem meninas a sacanear umas às outras o tempo todo. “Olha o salva-vidas! Que lindo! Vem me salvar meu bem! Quero respiração boca a boca!” – Todas riem…

Um pouco mais à direita, duas pequenas gêmeas, de presumíveis três anos de idade, reagem quase ao mesmo tempo e do mesmo modo aos mesmos estímulos. Ao ouvirem as músicas que vem do palco onde se apresentam instrutores de dança, fazem a coreografia em simetria. Gritam em uníssono ao verem os super-heróis: “Olha o Batman! O Homem-de-Ferro! O Homem-Aranha!” – Não sei se perceberam que não são os originais, muito diferentes em tamanhos e formas físicas daqueles. Também devem achar perfeitamente natural que estejam a vender algodão-doce. À passagem de um Batman mais parrudo, as senhoras festeiras pedem para tirar fotos com o “defensor da justiça”. Ele não vende o seu produto, mas ganha cachê por isso.

Vejo passar mais vendedores ambulantes, a pé e com carrinhos; catadores de latas de alumínios e outros a percorrerem as mesmas trilhas desenhadas por pequenos tridentes – marcas das patinhas das centenas de pombas que recolhem restos alimentares. Eu já desconfiava, mas fiz um teste. Joguei perto de mim um pequeno pedaço de maçã, justamente a parte central, que contém as sementes. O pedacinho de fruta foi ignorada solenemente por todas as pombas que se aproximaram do petisco. Tanto quanto os humanos, elas parecem preferir junk food.

Vez ou outra, passam acima da linha d’água aviões com propagandas em longas faixas. Não deixei de me perguntar se esse era o sonho do garoto que um dia queria ser aviador a se cumprir – realizar viagens de trajetos tão curtos quanto repetitivos, em uma rotina de voar em rumo certo.

A intervalos regulares, vou para a água, ao encontro às ondas, íntimo do mar, a brincar com aquele elemento. Às vezes, deito de bruços no raso, a esperar as ondas chegarem, como fazia quando tinha a idade de várias outras crianças que fazem o mesmo que eu, ao meu redor. Chego a perder a noção do tempo…

Na volta do meu penúltimo mergulho, antes do momento que escrevo esta crônica, não encontrei o meu guarda-sol e minha cadeira sob ele. Fui até a tenda-móvel do Paulo, onde tenho comprado as águas de coco e sucos que tomo eventualmente. O Arles me indicou um ponto à frente dele, para onde deslocaram o meu acampamento. Um grupo bem grande quis aportar junto a uns amigos e, dada a intimidade adquirida durante a semana que estou por aqui, trocaram a minha posição de lugar. Acostumado com situações estranhas causadas pela miopia e pelo alheamento em diversas situações, brinquei com o pessoal que quase não estranhei que não estava onde deveria estar. Estou acostumado a me sentir deslocado.

Por sorte, antes do meu translado, pude capturar mais um peixe. Quando me estirei na cadeira, com os óculos escuros no rosto, pude acalmar os meus sentidos e, excepcionalmente senti diminuir o volume da massa sonora que me açoitava por todos os lados. Atrás de mim, já havia visto um casal de namorados, quase a encostar os pés na minha sombra. Conversavam em um tom baixo, mas os meus ouvidos puderam ouvir o que diziam. Eles eram amantes (vim a saber), casados com outras pessoas. Eles me entregaram uma história quase pronta – Os Outros. Escrevi uma variação que não entrega ninguém. Ou, por outra, pode vir a entregar muitos amantes…
¹https-scenariumlivrosartesanais-wordpress-com-2017-03-10-realidade
²Escrita em Janeiro de 2017

One thought on “BEDA / Pescador

  1. Ah, os bastidores… às vezes, meu lado editora humana (rá) os prefere ao próprio livro, que a leitora e a editora preferem. Esses meus múltiplos. Gosto imenso de cada um deles.

    bacio

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