
Voltava da votação de domingo quando, ao subir por uma ladeira, o vi claudicante em seus passos magros tentando escalar centímetro a centímetro o caminho tortuoso guiado por seu faro em busca de comida. Soube disso apenas depois ao passar por ele e seus olhos anuviados de cegueira provocada por catarata. Velho, ossudo, pernas muito compridas para seu corpo apequenado, quase foi atropelado por dois carros que subiram em curva. Duas crianças brincavam na calçada e uma delas, uma menina com roupa de igreja (saia comprida e justa), quase chutou o pequeno ser, exclamando: “sai daqui cachorro magrela e feioso!”.
Continuei a minha caminhada por alguns metros. Olhei para trás e o serzinho ficava rodeando um entulho de restos levados pela chuva até uma reentrância feito um apêndice supurado. Voltei, pequei o pequeno no colo, que mijou em mim, talvez de medo. Leve feito uma pluma, quando pensei em perguntar para as crianças se conheciam o “dono” da criatura, elas já tinham se afastado. Eu o coloquei de encontro ao meu peito que, protegido por uma jaqueta plástica, impedia que eu me molhasse, caso voltasse a fazer xixi. O Sol brilhava, mas o dia estava frio. O pequeno Alexandre, nome que surgiu como ele tivesse se anunciado, tremia.
Apesar de ter cachorras resgatadas em casa, tirante a Dominic, que nasceu da Domitila, que fora também resgatada, nunca fui eu a pegar um bicho na rua. Por que este? Por estar desnutrido? Por ser velhinho? Por ter sido quase chutado por uma “criança dedicada ao Evangelho”? Não sei. Não pensava em Francisco, nem que a data comemorativa do meu santo estivesse tão próxima. Havia dormido um pouco mais de quatro horas depois de ter trabalhado umas vinte. Outubro, apesar de ser o mês em que nasci, começou estranho para mim. É como se estivesse em outro País. Um que não tivesse sonhado nem em meus piores pesadelos. Um pesadelo redivivo, de décadas passadas – coturnos pisando em nossas mentes. Que eu tenha cometido essa ação de certa maneira foi um pedido de socorro que foi atendido. Não apenas dele para mim, mas de mim para ele.
Neste dia de São Francisco, em memória do rapaz que um dia quis ser frei franciscano, eu abençoo o bichinho que surgiu no asfalto íngreme como se fosse a subida para algo melhor. A minha irmã disse que eu deveria procurar os eventuais cuidadores. Ao observá-lo mais de perto, concordou que Alexandre, O Pequeno, estava há vários dias sem comer dada à magreza que permitia que seus ossos fossem contados. Devido à cegueira, maior em um dos olhos do que em outro, e às condições físicas, pode ter saído por um portão, caminhado à esmo ou fora abandonado. Quando cheguei em casa, ofereci um pouco de comida a qual devorou em poucos minutos. Logo em seguida, dei um banho que Alexandre aceitou relutantemente. Eu o sequei, o envolvi em uma toalha quente e ele adormeceu entre almofadinhas. Quando acordou, dei um pouco mais de comida. Chegou a rosnar baixinho quando cheguei perto. Estava melhor.
Ontem, enquanto a Lolla estava no quarto com a mãe e as outras meninas – Dominic, Bethânia e Arya – estavam presas em uma parte cercada, deixei que passeasse pelo quintal. Ousado, farejou por todos os cantos. O melhor procedimento é evitar que as outras tenham contato com ele, pelo menos por enquanto, mas quando se encontraram por um breve momento, trocaram cheiradas mútuas. Creio que se darão bem. Sei que terá relativamente pouco tempo de vida. De fato, ninguém sabe quanto tempo nós mesmos temos de existência neste plano. Terei paciência para que volte a receber um carinho sem que pareça uma agressão. O que eu desejo é que Alexandre, O Pequeno, meu salvador, seja atendido em suas necessidades básicas até o final de sua jornada. Quem não quer?