
Ontem, no ônibus, vivi uma cena de cinema ou um trecho de livro de ficção. Não foi um acidente, uma correria, tiros de arma de fogo ou explosão, uma luta coreografada ou um beijo impetuoso e desavergonhado. Mais próximo de uma história ficcional, o acontecimento foi proporcionado por dois jovens pretos, vestindo chinelos, calções e camisetas, sentados lado a lado no banco à minha esquerda. Ouviam, provavelmente, um rap no celular – o que só pude depreender pelo acompanhamento ritmado de seus pés – visto que os dois dividiam os fones de ouvido, o que, por si só já era um fato inesperado, porquanto o mais comum de acontecer é depararmos com indivíduos que fazem questão de partilhar o seu gosto musical com todos a sua volta em volume acima do aceitável.
O mais jovem, que talvez tivesse 12 anos, perguntou como se fosse personagem de romance, de forma clara e pausada: “De onde será que vem tanto ódio?”. Ao que o mais velho, que aparentava ter um ou dois anos a mais, talvez seu irmão, respondeu: “Não sei, acho que do coração!… Do coração…”. Após uma pausa, o mais novo, devolveu: “Eu não odeio ninguém! Não tenho isso no meu coração!”.
Desconcertado por esse diálogo deslocado, que mais caberia em um livro de ficção infantil, quase perdi o ponto em que desceria e certamente deixei para trás dois protagonistas inconcebíveis de serem criados por mim, principalmente nesta fase de descrença pela qual eu passo. Esses dois garotos extraordinários, que avançavam a cidade adentro, ouvindo um rap de versos raivosos, são como os anjos imolados todos os dias, que sofrem a influência do meio que vivem, das mazelas humanas que os cercam, dos cultivadores das dores já vividas, que tentam semear em seus corações o ódio que sentem ou o efeito da frustração do que não viveram.
Em vez de tentar construirmos um mundo melhor daqui para frente, muitas vezes com a intenção de denunciar, tentamos reviver o terror daqui para trás. Temos esse direito de transformar seres de corações virgens em rossios semeados de ódio? Quando decretamos que o mundo é ruim e sentimos a necessidade de prepararmos os nossos filhos para ele, não cometemos um erro em deixarmos escorrer veneno nessa orientação e com isso reproduzimos outra pessoa igual a nós, que carregará uma herança maldita desde então? Será que queremos montar um exército de crianças soldados de uma luta já perdida por nós?
*Texto de 2012
Rap do bom…
O texto é de 2012, mas é tão atual… sigo com os meninos na mesma pergunta e receio já que meus netos e noras são negros e moram no Rio de Janeiro: De onde virá tanto ódio?
abraço, meu amigo
Mariana, em muitos casos, como o que está a repercutir atualmente nos Estados Unidos, de violência policial entremeada de racismo, ocorre a revolta contra a truculência sem razão por parte daqueles que deveriam defender a lei e a usurpam. No Brasil, o desnivel econômico entre os cidadãos incentiva o discurso de ódio – um dos sintomas da violência endêmica.