B.E.D.A. / Presentes & Festas*

Ele não estava acostumado a receber presentes. Não sabia responder com o devido entusiasmo que se espera de quem recebe uma boa lembrança, mesmo que fingido. Percebeu isso quando a esposa reclamou que o tênis que lhe dera não havia produzido o efeito desejado por ela. Parecia até ter desdenhado do mimo. Investigou mais a fundo o motivo desse comportamento e se locomoveu pela memória até a infância.

Até mais ou menos os dez anos de idade recebia presentes de Natal da tia, a matriarca da família espanhola que morava em São Paulo. Era casada com um proprietário duma pequena fábrica de produtos automotivos, que morreu quando o menino contava cinco anos. Algumas coisas começaram a mudar pouco a pouco. No Natal de seus onze anos, já não recebia mais presentes, a não ser roupas da prima e da namorada da tia, que vestia indumentárias masculinas, cheio de detalhes vestimentas dos anos 70.

Criança normalmente não vê roupa como presente, mas segundo a tia, pela idade ele não era mais uma delas. O pai, sempre ausente em nome da Revolução, pela qual um dia foi preso e torturado, assim que saiu da prisão preferiu sair de casa. Quando estava presente, o pendor revolucionário de esquerda o impedia de fomentar o espírito mercantil do Natal, além da desconsideração pela ideia de um Redentor religioso. O pai do então rapazinho cria que a redenção seria feita pela conscientização do povo, mesmo que fosse à ponta de baioneta. A Vanguarda se poria diante da massa comandada para derrubar os militares do poder. O que não deixava de ser uma religião.

Enquanto isso, a massa preferia comemorar o fato de, simplesmente, estar viva, a festejar gostosamente as datas lacaias ao Sistema. Ele se sentia mal por querer ganhar presentes de Natal. Sentia-se traidor da causa e do homem que idolatrava, apesar da sua ausência. Começou a desenvolver certa ojeriza pelas datas eivadas de intenções comerciais, incluindo os seus próprios aniversários que, por falta de condições financeiras, ele não se lembra de ter festejado algum dia.

A sua mãe vivia dizendo que quando ele fizesse quinze anos, teria uma grande festa. O inconformista não entendia da razão da mãe se fixar na quinzena de anos, ainda mais porque não era uma debutante. Mas deixava-a pensar que a queria. Mesmo com a sua pouca idade havia percebido que ela não conseguiria realizá-la. E assim foi.

O rapazinho, a partir dos dezesseis anos, tornou-se vegetariano e adepto de crenças transcendentes e nas datas como aniversários, Natal e Sexta-feira Santa, preferia fazer jejum. De ateísta, tornou-se irritantemente crente na energia que nos rodeia e constitui todas as coisas. O pai, ainda vivo, continuava afastado da família e preferia congregar com os parentes da esposa. Isso não foi muito diferente do que ocorreu com o pai de seu pai que, desde menino, viveu isolado, sem família consanguínea por perto. Nesse aspecto, pai e avô percorreram o mesmo caminho, do qual se desviou, mas os ecos do passado persistiam a reverberar…

*Texto perdido de 2016.

Participam do B.E.D.A.:
Cláudia Leonardi
Adriana Aneli
Darlene Regina
Roseli Peixoto
Mariana Gouveia
Lunna Guedes

8 thoughts on “B.E.D.A. / Presentes & Festas*

  1. Nunca recebi um presente de natal de meu pai também. Nossos natais durante sua existência sempre foi cercado de muito baixo astral. Ele sempre ficava deprimido nessa data. Só passamos a festejar natal, depois de sua partida. Belo texto!

    1. Acho que tivemos infâncias típicas de certa faixa sócia-econômica, com todas as tribulações envolvendo as precariedades condizentes à ela. O que é incrível é nos reconhecermos tão clichês, aténos piores momentos.

  2. Eu não fui educada a presentear… a nossa família tinha outros hábitos. Quando recebi das mãos de C., um caderno, ela fez questão de dizer, ao vê-lo em vermelho, lembrei-me de você, então achei justo unir os dois. Não era um presente. Mio babo trazia balas coloridas ao voltar das viagens porque sabia que eu gostava delas. Separava durante a viagem todas as vermelhas e ficava com as outras.
    Certa vez, ao caminhar pelo parque, encontrei uma pedra (lindíssima) e a levei comigo, achei que seria perfeita para ser um peso de papel.
    Presentear para mim tem outra conotação… parece aquelas festinhas de crianças, com embrulhos e caras de decepção ao ver que não era o que pensava-sonhada-desejava. Nunca passei por isso. A minha zia, tinha mania de presentes. Me deu uma boneca… e avisou aos meus pais que eu tinha livros em excesso e poucos brinquedos. Trocamos olhares-sorrisos e a boneca ficou lá em cima do sofá.

    1. Lunna, no meu caso, a precariedade era tanta que até uma garrafa de groselha era festejada. Mas os brinquedos que ganhei, os guardo na memória porque me lembro de ter viajado com eles para mundos paralelos.

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